Você já foi à Baía? Não? Então vá!
O homem estava ali, mesmo à saída do aeroporto de Ilhéus, em pé, braços cruzados sobre o peito, próximo do primeiro táxi da fila. De estatura mediana, tez acobreada, cabelo e bigode negros, fruto de sucessivos episódios de miscigenação. O olhar inspirava confiança.
– O senhor é taxista? – indaguei, a confirmar.
– Ao seu dispor! –, respondeu ele.
– Conhece o Canabrava Resort?
– Com certeza. Todo o dia transporto turistas para lá.
Disse que se chamava Joaldo, mais conhecido por "Jota" e, de pronto, estabelecemos uma relação mútua de cordialidade e confiança. Nascido, criado e residente na cidade que Jorge Amado tornou universalmente conhecida.
Eram dezoito e trinta, a noite já se instalara em definitivo. Para além da estrada fracamente iluminada, a paisagem luxuriante reduzia-se a um borrão escuro. O automóvel seguia em velocidade moderada, propícia ao bate-papo que iniciáramos mal a viagem começou, tempo suficiente para nos darmos a conhecer. O empreendimento ficava a cerca de vinte quilómetros, mas o tráfego era bastante reduzido àquela hora. Em menos de nada, "seu" Joaldo anunciou que estávamos a chegar. Tempo ainda para acertarmos uma visita a Ilhéus no dia seguinte, um sábado, visto que a empresa turística que trabalha junto ao resort encerra aos fins-de-semana.
O alarido que, em Portugal, se faz quanto aos fenómenos de violência que vão ocorrendo no Brasil, particularmente no Nordeste, levou-me a perguntar-lhe se não era arriscado apanhar um táxi à saída dos aeroportos. "Seu" Joaldo garantiu-nos que não, que todos os taxistas estavam registados pelas autoridades policiais, que qualquer outro veículo de aluguer era excluído da área adstrita aos táxis.
Fomos recebidos com todas as atenções. Feito o check--in, Jefferson, o baiano, moço esperto, acompanhou-nos à instalação que iríamos ocupar e resolveu, com notável mestria, os pequenos problemas logísticos que se nos depararam. No dia seguinte, aguardámos seu Joaldo na recepção e ali travámos conhecimento com outros funcionários inexcedíveis em atenções: Daniel Santos, Daniel Zacarias e José Emerson. De todos, o mais exuberante foi, sem dúvida, Daniel Zacarias, o "Cabelinho", como, carinhosamente, é conhecido quer pela administração quer pelos colegas por obra da guedelha eriçada que ostenta. Para nós, foi de bom augúrio ter começado aqui a longa viagem por terras brasileiras.
Fomos então conhecer Ilhéus, a capital do cacau, terra onde Jorge Amado viveu grande parte da sua vida e foi cenário de alguns dos seus romances, incluindo Gabriela... Este, em que se baseou a telenovela com o mesmo nome que passou na RTP a meio dos anos setenta, divulgou a cidade pelos quatro cantos do mundo. Em Portugal, ninguém perdia os episódios diários e a loucura chegou a ponto de a própria Assembleia Constituinte antecipar o fim das sessões para que os deputados chegassem a suas casas a tempo de verem as peripécias da história em que a capitosa mulata era heroína. Evidentemente que muitos homens recusavam-se a admitir que viam a telenovela, não fossem outros considerá-los menos machões.
Na companhia de seu Joaldo revisitámos a Ilhéus das primeiras décadas do século XX, passeámos pelas ruas onde estão situados os palacetes dos famosos coronéis, algumas das mais ricas igrejas, incluindo a Matriz onde as virtuosas esposas e filhas dos grandes proprietários assistiam às práticas litúrgicas. Os maridos acompanhavam-nas até à entrada da Casa do Senhor e, logo que elas se perdiam no interior do templo, esgueiravam--se por uma viela lateral que conduzia à Casa do Diabo, o famoso Bataclan, situado ali mesmo nas traseiras, e também eles se perdiam nos ternos braços das "meninas" de Maria Machadão. Fizemos esse curto trajecto, penetrámos naquele "antro do pecado", estivemos no quarto de dormir da cafetina que ainda guarda os móveis e algumas das suas roupas. Saímos pelo piso térreo, uma sala remodelada. Ali funciona, actualmente, uma espécie de escolinha onde decorria uma aula de dança para crianças. Professora, assistentes e meninas sorriram e acenaram à nossa passagem. Na mesma igreja casavam as "meninas bem" da cidade. O mais célebre desses casamentos foi o da filha do coronel Tavares (Misael). Este não olhou a despesas, tendo mandado calcetar com pedra inglesa a Rua António Lavigne, onde se erguia o seu palacete, até à Igreja Matriz.
Rumámos ao Café Vesúvio de seu Nacib e sentámo--nos junto de Jorge Amado na esplanada. Recusou, amavelmente, o convite que lhe fizemos para tomar connosco um suco (sumo) de graviola ou um chope "estupidamente gelado", mas fez gosto em posar para uma foto em nossa companhia.
– Na casa ali ao lado morou, até há pouco tempo, D. Branca que serviu de inspiração a Jorge Amado para criar a personagem de Gabriela – explicou-nos seu Joaldo – e, segundo dizem, nada perdia no confronto com Sónia Braga. E acrescentou – esticando o dedo indicador –, é feio mas, às vezes, dá jeito: Ali do outro lado daquela rua é a casa que pertenceu aos pais do nosso grande escritor. Foi o seu pai quem a mandou construir, em 1920, depois de ter ganhado a "loteria". Mudaram-se de outra cidade onde o pai exercia a profissão de sapateiro. Outros dizem que era fazendeiro. Para o caso, pouco importa.
Fomos visitar a que hoje se chama Casa de Cultura Jorge Amado, assistimos a um vídeo sobre a vida e a obra do romancista, contemplámos uma exposição permanente das suas obras e de alguns dos seus objectos pessoais.
Seguimos até à parte mais alta da cidade, passámos em frente dum edifício enorme que seu Joaldo informou ter sido um colégio de religiosas para o qual os coronéis despendiam, regularmente, importantes quantias. Era uma grande propriedade onde as freiras criavam gado bovino e outros animais domésticos. O ensino que ministravam era de grande qualidade e ali estudavam as filhas dos grandes senhores do cacau e de outros funcionários importantes. Bem no alto ficava o cemitério. Estivemos junto ao imponente jazigo da família de Misael Tavares e procurámos os do coronel Amâncio ou do prefeito Ramiro Bastos. Inutilmente. Com certeza já teriam retirado as inscrições. Numa espécie de arrecadação, vimos alguns homens, que deveriam ser funcionários, e dirigimo-nos a eles para que nos informassem do que pretendíamos. Jogavam cartas e foram em extremo desagradáveis, caso único naquela terra. Teriam instruções para afastar gente curiosa? Ao sairmos, espraiámos a vista na belíssima paisagem que se nos oferecia. Lá em baixo à nossa esquerda, podia ver-se a zona portuária, e os grandes edifícios arruinados onde, outrora, eram armazenadas as safras de cacau que abasteciam um vasto mercado internacional. Situavam-se à beira dum porto interior adrede construído para esse fim. Ao centro era a parte nobre da cidade, enquanto para a direita o casario trepava, apertando-se lá no cimo entre dois morros. Embora o turismo lhe tenha dado um novo impulso, a cidade mostra as cicatrizes que resultaram duma prolongada doença subsequente aos tempos esplendorosos do cacau para os quais, com toda a probabilidade, não haverá "reprise".
Por:
Nuno Afonso
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