Uma vida de cão
Andávamos a deitar a segunda volta de sulfato, na vinha do Padeiro, quando foi lá ter um cão, ainda cachorro, que não mais largou o pessoal, apesar de ameaçado – disse o Carlos, ao telefone, pedindo guarida para mais um amigo do homem.
Disse-lhe que sim, pensando:
Como deram ao cão da merenda, já que ao almoço vêm a casa, este não mais largou os futuros donos. É costume fazer-se uma pausa, nos trabalhos do campo, e "comer uma bucha e beber uma pinga". Os cães têm direito a bocados de pão e apresigo. Ficava surpreendido, em pequeno, a ver que o naco de carne minguado ainda dava para o cão: "aboca aboca", Atrevido?!
O forasteiro foi baptizado de Lucky, (nome do extinto dálmata) e não mais largou a quinta e nem as idas às vinhas. Não podendo acompanhar a carrinha, aparecia mais tarde. O Douro, arraçado de Serra da Estrela, salta para a caixa da carrinha parada ou sobe ao muro, junto do qual esta vai passar. É só abrandar e vê-lo saltar! Os dois boxeres ficam nas instalações da casa.
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Ilustração RUI LAIGINHA |
Ainda não tinha entrado no portão da quinta da Fonte Nova, num sábado dedicado às cerejas, já o "salsicha" citadino patinhava os vidros do carro, doido por saudar os amigos da aldeia! Qual o espanto dele, e dos donos, ao depararem com o novo canídeo, sendo o primeiro a ser cheirado pelo Roby, depois foram o Spin, o Lucas e o Douro, enquanto rodeavam o automóvel. Só depois apareceram o Carlos e a Helena.
Ao verem-me fazer festas no focinho do novo animal, não foram precisos esclarecimentos. Quando fomos visitar o galinheiro, armazéns e cerejeiras notei que era seguido pelo cachorro. Pensei: "já fui adoptado"; e tenho que o adoptar, apesar dos ciúmes do Roby, armado em caçador de pássaros e rolas (domésticas ou indianas) a comerem as rações das galinhas.
Reparei bem no bicho:
A cor do pêlo, apesar de mal tratado, era de um castanho-arruivado, todo do mesmo tom. No canil, qualquer criança "obrigaria" a dar uma pequena fortuna para o levar para casa. Apesar de novito, já apresenta um tamanho razoável, quase igual ao dos dois boxeres castanhos. Será de raça labrador?!
Naturalmente, ao transmitir ao Carlos a "fineza" do bicho, retorquiu:
– Enquanto pequenos encantam aos donos, mas depois crescem, deixam de ter espaço nas marquises e passam a dar mais trabalho. Resultado: abandonam-nos na estrada! Os donos do Lucky vieram abandoná--lo na aldeia!, sabendo que os soutelenses de "bom coração" lhe dariam guarida!
Recordei as estadias forçadas dos dois boxeres, tão do agrado dos caseiros.
Um foi encontrado, em Lavra – Matosinhos, ferido e abandonado. Após ser dado apto pelo veterinário, passou a residente do apartamento citadino e companheiro nos passeios de bicicleta do novo dono, João José. Foi habituado a andar na parte traseira do jipe. É um ás a entrar e a sair duma viatura. Em fins-de-semana, de idas a Soutelo, foi ficando uns dias até sempre!
O outro foi comprado pelo Manuel José, com pedigree especial, viveu na residência da rua Padre José Pacheco do Monte, no Porto, e chegou a acasalar com cadelas de alta linhagem de moradores na Foz do Douro. Adulto, e a ir para velhote, foi também para Soutelo. Está num lar da 3ª idade!, quase cego, mas controlado pelo médico veterinário de S. João da Pesqueira. O dono, quando o visita, quase já não é reconhecido; para a Helena passou a ser o ai Jesus!
Se são precisos canis para animais velhos, são urgentes outros para os cachorrinhos que deixaram de encantar!
* Director do Colégio Vieira de Castro
[email protected]
Por:
Gil Monteiro
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