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Edição de 30-04-2024
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    Arquivo: Edição de 30-06-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Amores trocados

    Para o carioca, nenhuma conversa tem jeito se não versar um destes temas: mulher, futebol e samba. De preferência, os três juntos. E usando a criatividade e o humor que Deus concedeu a esse povo admirável, adianta:

    – “Coração de mulher é igual a trem da Central, sempre cabe mais um”.

    O trem da Central, em hora de ponta, não rebentava pelas costuras porque não havia costuras, parecia um bicho informe procurando escapar, por trilha estreita, ao seu destino de contentor de miséria humana, todo o espaço interno superocupado e cachos de penduras em posição de tal maneira instável que, a um sacolejão inesperado ou poste de iluminação demasiado próximo da linha, eram alijados contra o talude como imprestáveis bonecos de pano. Para a maioria, ficar em terra significava perder o dia de trabalho seguinte *, embarcar naquelas condições podia significar a perda do resto da vida. Cada um jogava os seus trunfos de criatividade para alcançar uns escassos centímetros de espaço.

    Quantas vezes, cada um de nós se terá interrogado sobre esse mistério que designamos por amor? A palavra abarca tantos sentimentos, tão distintos uns dos outros que me faz lembrar os quinze filhos de “seu” Geraldo e Dª Lindalva, ambos mulatos, cuja cor de pele percorria todos os matizes entre o negro retinto e o branco mais lavado: um bastante escuro, outro de tez castanha bem acentuada, outro ainda de um cinzento carregado e assim por diante, até ao Gilson, que mais parecia de origem nórdica. Há o amor paterno, materno ou fraterno, o amor ao próximo que Jesus instituiu como o principal Mandamento, o amor de Deus que deverá abarcar todos os outros. Há também a metonímica expressão “fazer amor” que nem sempre corresponde a um relacionamento sentimental.

    Considerando, porém, o mais comum desses significados, a ligação afectiva entre dois humanos, geralmente de sexos diferentes, e tomando por adquirido que o coração é a sede dos sentimentos, das emoções, será diferente o amor do homem do da mulher? Haverá, no masculino e no feminino, a possibilidade de amar, simultaneamente e com igual intensidade, duas ou mais pessoas? Sabemos que há sistemas sociais ou religiosos em que a um homem é permitido ter várias mulheres (poligamia) e, com menos frequência, a uma mulher ter vários homens (poliandria). Presume-se que, mesmo nestes casos, haverá uma gradação, um indeterminado grau de precedência entre as mulheres do mesmo homem e nas opções amorosas da mulher relativamente a cada um dos seus homens. O amor, quando é verdadeiro, pode extinguir-se ao fim de algum tempo? E quanto tempo levará se não houver motivos fortes que o tornem obrigatoriamente defunto? Presumo que as respostas residirão na idiossincrasia de cada homem e de cada mulher.

    Em pé, por detrás do balcão do café, Ricardo via, cinquenta metros à sua frente, o edifício do Colégio D. Pedro II, o movimento de professores, alunos e funcionários que transpunham o portão num sentido e noutro. Professores e alguns funcionários vinham ali com frequência. Os docentes chegavam em grupo, conversando enquanto venciam a pequena distância, transpunham a Rua Verna de Magalhães com a tranquilidade de quem pisa chão conhecido e tinham à sua espera um pequeno reservado e um jovem universitário solícito e pródigo em simpatia. Em momentos diferentes, apareciam os contínuos. A estes não os movia a benévola solicitação do estômago mas a procura de algo mais rude, uma bebida estimulante que os ajudasse a vencer as dificuldades quotidianas no inglório corpo a corpo com a vida. Vinham isolados, furtivos, alheios ao horário regulamentar, buscavam o recatado extremo do balcão onde bebericavam o habitual traçado (cachaça e conhaque), e desfiavam desventuras, envoltas em discurso ágil e descomplexado. Outros erguiam o cálice de cana, derramavam o primeiro gole contra o balcão “para o santo” em sinal de respeito pelas entidades sobrenaturais de origem africana e bebiam o resto de um trago, penalty acompanhado de um enérgico estalar de dedos.

    Ao fim da manhã ou quando a tarde já dava sinais de cansaço logo transformados em promessas de convívio longe dos livros, ouvia-se o toque da campainha que, nessas alturas, parecia mais eufórico. Acto contínuo, os passeios inundavam-se de jovens estudantes que demandavam os respectivos lares, eles em grupos numerosos e barulhentos com abundante coreografia gestual e sonoras gargalhadas; elas às duas e três, menos exuberantes mas igualmente vivazes. Passavam junto ao bar e, se os rapazes pareciam alheados em relação às pessoas que ali trabalhavam ou que povoavam o espaço, as moças olhavam e seguiam abafando risinhos e olhares, um pouco menos que discretos. Ricardo observava enquanto ia servindo os clientes e não dava mostras de especial interesse, parecia mesmo indiferente aos “olhinhos” que lhe faziam. Em breve, passou a conhecer muitos daqueles rostos e deu-se conta de que duas jovens em particular reparavam nele.

    Semanas, talvez meses, o jogo desenrolou-se sem visíveis alterações. Elas passavam, cultivavam certa discrição mas havia denúncia nos seus olhares. Ricardo não podia dizer a partir de quando sentiu que uma delas o tocou de maneira especial. E, à medida que o tempo corria, crescia a sua curiosidade e o interesse em chegar à fala com ela. Se estava ocupado no momento da saída, chamava um empregado para o substituir no atendimento à clientela e ficava ansioso até que via passar as duas amigas. Em seguida, claro, rememorava aqueles fugazes instantes e sonhava. Não havia dúvida de que estava a ficar caidinho pela bela moça de cabelo escuro, elegante no seu uniforme e de olhar expressivo. Tinha já confiança suficiente com “seu” Leite para lhe confiar a delicada tarefa de os aproximar. Descreveu-lha com a precisão que se impunha depois de referir a circunstância de a ver sempre na companhia da mesma colega. O funcionário garantiu que não tinha dúvidas sobre a destinatária da sua mensagem. Ricardo insistiu:

    – Veja lá, “seu” Leite, se não vai entregar o bilhete à pessoa errada?

    – Deixe comigo, Ricardo. Amanhã mesmo a Maria da Glória saberá do seu interesse.

    O tom que empregou deixou-o sossegado. Começou a imaginar como seria esse encontro, o que lhe diria, fez, mentalmente, um verdadeiro “argumento” como se fossem representar uma peça de teatro. Bem de mais sabia que, em casos tais, essas preparações de nada servem, na ocasião vai tudo às urtigas e o que vale é a espontaneidade do diálogo.

    Dois dias mais tarde, “seu” Leite vinha radiante: a moça aceitara encontrar-se com Ricardo no Meyer, junto à parada do ónibus que costumava pegar para retornar a casa após as aulas. O rapaz ainda quis confirmar:

    – Tem a certeza de que é mesmo ela que eu vou encontrar?

    – Absoluta. Vá com Deus!

    Qualquer que tenha sido a razão, distracção ou a mente toldada pelo álcool da parte do mensageiro, ou troca efectuada pelas duas jovens, o certo é que Ricardo encontrou a Cármen Luísa em lugar da Maria da Glória. Mas não se deu por achado, apesar de decepcionado, a conversa tornou-se agradável e deu origem à marcação de novo encontro, desta vez num domingo à tarde. Dali em diante, todos os domingos se encontravam, passeavam, iam ao cinema… Em pouco tempo, tornavam-se namorados. Maria da Glória ia ficando cada vez mais esquecida. Foi a própria Cármen quem disse ao Ricardo que a amiga tinha um namorado havia algum tempo. Dali em diante, já não vinham juntas quando saíam do Colégio D. Pedro II, com certeza para que Cármen e Ricardo pudessem usufruir em plenitude esses breves instantes de proximidade.

    * O trem da Central partia das imediações da Av. Presidente Vargas e transportava milhares de trabalhadores para bairros muito longínquos da Zona Norte do Rio de Janeiro. Em muitos casos, o tempo de viagem era tão longo que, dizia-se, o trabalhador chegava a casa pela madrugada e mal tinha tempo de dar um beijo na mulher, receber a marmita com o almoço do dia seguinte (desse dia) e rumar à estação ou apeadouro para retornar ao trabalho.

    Por: Nuno Afonso

     

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