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    Arquivo: Edição de 22-11-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Perfume

    Quando fui para a escola primária achava que a aprendizagem não me iria ser muito útil e assumo que pertencia ao grupo dos que trabalhavam para a “tangente”. Toda a gente falava, os professores ensinavam e eu não “estava lá dentro”. Foi assim pela minha vida fora e enquanto fui andando nos 11 anos de escolaridade que fiz no tempo do meu tempo e que ainda se arrastou em alguma formação técnica com que a vida profissional me fez deparar. Depois, em finais de 2009, quando olhava ao meu redor e pensava estar reduzida a nada, abro um saco castanho que tinha ficado fechado durante três anos e saem de lá papéis: certificados de escolaridade, certificados de formação e um conjunto de dossiers que me mostravam que, um dia, algures no tempo do meu tempo, eu teria aprendido alguma coisa.

    Os meus 50 anos de idade vão representar sempre um marco importante da minha vida, quando efetivamente me agarrei ao “saber” . Tinha-me dado conta de que a aprendizagem se tinha tornado minha aliada e a minha mais completa companhia. Olhando à distância – acho que percebi –, terá sido das coisas que nunca me abandonou. Li de Antoine de Saint-Exupéry: «Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que fez a tua rosa tão importante». Ainda hoje interiorizo isso como verdade pois acredito que nesta nova etapa da minha vida tenha aprendido a cuidar desta forma a minha formação. Emergia num terreno árido, daí que precisei de aprender a conquistar a autoconfiança, teimosia para não me derrubar a mim mesma e fé para voltar a acreditar – tudo o que um jardineiro também precisará para não deixar tombar a sua flor.

    Acompanha-me um hábito que adquiri - aponto dúvidas, pergunto, consulto, cruzo opiniões, questiono. Quando me sinto esclarecida “dou baixa” no meu check-list mental e lá sigo em frente, atrás de mais. Adotei como imprescindível a companhia de um papel e de uma caneta que se tornam úteis em momentos repentinos em que me cruzo com algo que me prenda a atenção, como aconteceu um dia em que ouvia uma entrevista com um aluno de uma escola profissional, o Cenfim. Os meus registos apontam novembro de 2012 como a data em que isso aconteceu. Este jovem tinha escolhido como opção especializar-se em desenho industrial, num curso com elevada taxa de empregabilidade e de tal forma isso era verdade que não tinha mãos a medir, nem medo do futuro que se lhe deparava risonho, sem contudo se focar no propósito de, no seu futuro, ir adicionando mais especializações e aumentar o potencial do seu conhecimento.

    A reportagem a que me refiro abordava a importância e o futuro promissor que estes cursos profissionais também apresentavam como alternativa a quem não podia (ou não queria) seguir um curso superior. Referiam na reportagem que esta vertente de ensino não tinham o mesmo “glamour” de uma licenciatura, mas estas competências eram mais do que necessárias na componente do conhecimento técnico. O entrevistado corroborava e com orgulho dizia que não tinha problemas na procura de emprego e ainda eram apelativas as propostas para trocar “por melhor” – é que sempre hão-de haver empresas que procuram o melhor e pagam para ter o melhor, ainda mais numa raridade de especialização da componente prática que é feita a trabalhar numa banca, num torno, em máquinas de CNC, em frente a um computador, a uma máquina de costura, etc., etc..

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    Percebi isso num dia destes, quando fui visitar o Cenfim. Fiquei contente por ver lá alunos, muitos alunos, de bata vestida e sem se preocuparem com o tal “glamour”, que nem sempre será a garantia de que se consegue chegar ao topo de um percurso profissional. Estes jovens, exatamente pelo facto de ainda serem jovens, não terão muito a noção de que, sendo curiosos, profissionais e competentes, a vida se irá encarregar de lhes ir adicionando conhecimento, fazendo com que se tornem nos adultos que, ainda hoje, são imprescindíveis em empresas que precisem de muita componente técnica. Não será menos verdade que é esse facto que torna estas empresas competitivas ao ponto de se expandirem por esse mundo fora onde sempre seremos conhecidos por sermos um povo do “desenrasca” e até pela elevada capacidade de adaptação a novas metodologias, que é outra das nossas fortes características.

    Acumulava eu estes “registos de memória” até ao momento em que tudo me merecesse um texto quando, precisamente numa altura em que tinha tirado férias de tudo, de todos, do meu bloco de apontamentos e até da minha aprendizagem (pensava eu), ouvia na televisão uma jovem menina que a uma dada altura dizia, numa convicção que parecia inabalável – «uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo». Ouvia falar assim Malala Yousafzai que passava num serviço noticioso da TV. Socorri-me de um guardanapo de cozinha para registar a lição que me estava a ser dada. Os cerca de 600 Kms que fiz na viagem de regresso a casa foram preciosos para que mentalmente fosse encontrando a forma de encadear tudo aquilo que parecia importante para o meu texto, em que escolhi começar pelo meu percurso de criança, com um professor, uma sebenta, uma lousa e um livro.

    A forma como cada um absorve e valoriza o que aprende é perceção pessoal. Felizmente para Malala a vida coloca-nos em idades díspares, daí que eu, ao voltar a sentar-me em bancos de salas de aula, tinha encontrado para mim uma frase escrita por uma pessoa já mais próxima da minha geração – Peter Drucker, que expressava o meu sentir: «A educação faz com que as pessoas sejam fáceis de guiar, mas difíceis de arrastar; fáceis de governar, mas impossíveis de escravizar». De facto a mim, a educação e a formação feita já em idade adulta devolveram-me acima de tudo, uma consciência. Encontrei ainda uma sensação única – a perceção de como se pode ser capaz de derrubar tudo aquilo que vamos instituindo como barreiras que nos vão aprisionando, dentro de nós mesmos, deixando do outro lado da fronteira a nossa própria liberdade.

    Tento nunca ter a ingratidão de dizer que se calhar foi tarde de mais. Também jamais considerei ter sido um desperdício ter ido procurar inúmeras respostas a uma faculdade. Claro que encontrei muitas perguntas e uma delas, simples, mudou um pedacinho de mim: «Oonde aprendeu a escrever desta forma?». Ao terem-me questionado, ensinaram-me que aquilo que até a uma dada altura me complexava por serem conhecimentos de 1977 (“velhinhos” – pensava eu –, e iniciados no mundo do trabalho com o rigor e a disciplina de se ter chefias exigentes e em que as “ferramentas de trabalho” eram um livro que se chamava prontuário ortográfico e outro cujo nome ainda hoje é dicionário). Afinal eram termos que não estavam “fora de moda” e tudo fazia parte de uma formação profissional que a vida enraizou e permitiu que “ficassem”.

    No registo destas reflexões sinto necessidade de ir recuperar a lembrança da lição de há uns dias a esta parte, quando senti vontade de entrar de novo numa perfumaria que me era familiar em tempos que já lá vão. Dirigi-me ao balcão e perguntei se não teriam uma amostra de um perfume que eu sentia necessidade de pôr – ia ter um encontro e para mim, comprar o perfume, em tempos de hoje, estava fora de questão. A senhora a quem me dirigi olhou para mim e de sorriso aberto respondeu-me prontamente: «Claro que sim!». Estendeu-me uma pequena amostra e na despedida que lhe fiz com um agradecimento disse-me chamar-se Clementina. Eu sorri, não pela invulgaridade do nome mas tão somente porque Clementina foi o nome da mulher que numa sala de entrevista me convenceu que aos 50 anos de idade as minhas aprendizagens ainda valiam de alguma coisa.

    Agora, fora de salas de aula, “Perfume” foi a minha forma de aprender sobre o que podemos obter em momentos que às vezes nos abalam quando, de forma teimosa, vão fazendo questão de nos “massacrar” com um “já não vale a pena”. Sorrio e sei que a Clementina não levará a mal por saber que o tal encontro a que me referia era comigo mesma. Precisei de medir a coragem de que tantos estaremos necessitados para lutar pelo tanto que ainda há para desbravar. Assim, ao seguir esta “fragrância”, dei-me conta do respeito que ainda se encontra para lá de muitas portas e ainda associo outra memória, ao lembrar que os momentos de descanso em que ouvi Malala só foram possíveis porque me disseram: «Tem a nossa casa para descansar». Nesta família, alguém foi teimoso e quis ir mais além – deu continuidade à sua formação. Com o esforço exigente que é ser-se estudante/trabalhador, conseguiu alcançar o seu sonho: ENSINAR, na faculdade onde eu tinha voltado a encontrar o entusiasmo de acreditar.

    Concordo com a Malala Yousafzai contudo, há uma aprendizagem que ela irá recolher ao longo da sua vida: o mundo só mudará se nós mudarmos e nós só mudamos se não quisermos parar de aprender, até com a própria vida. Estou certa que ela não me levará a mal que eu ajuste a sua frase ao meu sentir de agora, comungando da sua forte convicção – «um adulto, um professor, uma caneta e um livro» também irão sempre a tempo de ajudar a mudar o mundo. O percurso será como uma “estrada”, que começará sempre de meninos e será percorrido por alunos que a vida irá transformar nos adultos que, mediante o que escolherem abraçar como profissão, irão decidir se querem ou não contribuir para a mudança do tal mundo, o nosso mundo – que jamais alguém poderá impedir que «pule e avance, como bola colorida, entre as mãos de uma criança», tal como escreveu António Gedeão.

    Por: Glória Leitão

     

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