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    Arquivo: Edição de 20-09-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Um drama em três actos e um epílogo – 2º acto

    Toda a ingenuidade será castigada

    Em terras como a nossa onde nada acontecia, falar-se de um pároco novo que estava para chegar era sempre notícia e assunto para muitas conversas. Havia logo alguém que trazia informações sobre a pessoa, a sua vida e maneira de ser, embora acrescentasse vários pontos e até coisas inventadas. Os homens pareciam menos interessados, a senhora, que é mulher como eu, Dª Alice, sabe que nós somos mais curiosas, pomos sentimento em tudo, as moças, então, estavam ansiosas por conhecê-lo, segredavam umas com as outras, riam-se, sonhavam com um homem bem-parecido, assim tipo artista das fotonovelas que viam nas revistas. Sabia-se que era de uma aldeia chamada Corujeira. Acharam graça ao nome e, com o tempo, ficou conhecido como padre Corujeira.

    Vinha com fama de mulherengo, mais interessado em saias do que no Evangelho. Entendemos que melhor seria esperar para ver. O tempo provou o contrário, devíamos ter prestado mais atenção ao que diziam dele.

    Quando fez a sua apresentação, deixou toda a gente maravilhada, não tanto pela presença, apesar de tudo, agradável, mas porque falava bem, quer dizer, pela forma de usar as palavras. No fim da Missa, os comentários foram quase todos favoráveis como se a taluda houvesse bafejado a comunidade. Em casa, também simpatizámos com ele e, à mesa do almoço, não escondemos das nossas filhas a boa impressão que nos tinha causado e a boa impressão foi geral.

    Os primeiros tempos foram de excelente relacionamento. Era alegre, divertido, prestável e zeloso quanto ao seu trabalho de pároco. Adultos e jovens mantinham com ele certo à-vontade e companheirismo, estariam dispostos a satisfazer qualquer pedido seu. O contrário também era verdadeiro: mostrava-se sempre disponível para ajudar os paroquianos, qualquer que fosse o problema de cada um. A nossa filha Lurdes era catequista, ela e as colegas ficaram muito bem impressionadas, porque lhes ensinava outra maneira de lidar com as crianças sem as aborrecer.

    Mas, nem tudo o que reluz é ouro e o pior veio a seguir. Pouco a pouco, ia conhecendo a vida das pessoas, se as raparigas namoravam, com quem namoravam, se as coisas corriam bem entre os pares, se os pais delas e deles gostavam dos namoros que tinham… O que não ficava a saber em conversas mais ou menos claras, diziam-lho no confessionário.

    – Ouvi dizer que também fazia uso de certos truques para comprometer as moças, quer as da aldeia, quer as jovens professoras solteiras que lá eram colocadas.

    – Olhe, Dª Alice, eu nunca prestei muita atenção ao que diziam, mas constava que tinha o mau hábito de, à noite, andar a cavalo, trotando pelas ruas empedradas das aldeias. Ao passar junto à casa da moça, freava o cavalo e ali ficava, por baixo da janela, como se estivessem em animada conversa. Era quanto bastava para que as vizinhas começassem a dar à língua que ele e a professora… A intenção do tipo era que a jovem, pensando que não se livrava da fama, quisesse ter também o proveito. Mas essa história foi nos seus primeiros anos de padre. Os tempos mudaram e ele passou a andar de carro.

    Por essa altura, vivíamos com algumas dificuldades e tínhamos contraído dívidas com os estudos das nossas duas filhas mais novas no Liceu e, mais tarde, na Escola do Magistério Primário. Queríamos que elas fossem professoras, mas o rendimento da lavoura era curto. Estudavam em Bragança e tínhamos que pagar pensão, livros e outros materiais, propinas… O padre sabia e ofereceu-se para nos emprestar o dinheiro de que precisávamos. Em nossa boa fé, deixámo--nos enredar tal e qual como as moscas se deixam envolver na teia da aranha. Como podíamos imaginar que a cobrança seria tão cruel?

    – Ele morava em Muros Baixos, tia Paixão?

    – Não senhora, morava em Rabaças, uma aldeia vizinha, com uma irmã que acobertava as suas sacanices. Quem desconfiava que ela fazia o jogo do irmão? As moças aceitavam o convite para ir a sua casa porque sabiam que a irmã vivia com ele. Nem sequer as coscuvilheiras mais atentas se atreviam a levantar suspeitas quando as viam lá entrar. Aceitassem ou não as suas investidas, nenhuma tinha coragem de contar o que se havia passado nesses encontros. A minha filha Lurdes foi vítima dessa manobra suja. Era tão bonita a nossa filha! A senhora lembra-se dela, não lembra? Ela e a sua eram do mesmo tempo.

    – Era muito bonita, sim. Cabelos loiros em cachos e uns olhos esverdeados, muito expressivos.

    Quando esse amaldiçoado veio para a nossa paróquia, já ela era professora e trabalhava em Remelhe, a poucos quilómetros de Muros Baixos. Tinha que trabalhar até às três da tarde, mas, próximo do fim do ano, ficava lá mais tempo com os alunos que iam a exame da 4ª classe. O pai ia buscá-la todos os dias, trazia-a a cavalo na mula, de maneira que chegavam a casa a boa hora. O tempo que sobrava dedicava-o à igreja. Em casa, ajudava-me só a servir a ceia e a arrumar a cozinha. Tinha que se deitar cedo, porque a escola começava às nove da manhã. Chegar e não chegar…

    Da primeira vez que nos pediu licença para ir a uma reunião em casa do padre, nem por sombras imaginámos traço de maldade no convite. Estávamos perto do Natal e disse-nos que precisavam de combinar os ensaios e as cerimónias da festa. Repetiu a visita algum tempo depois e outras vezes mais. Houve uma ocasião, em que me pareceu triste, mas julguei que era cansaço e não quis aborrecê-la com perguntas.

    Um dia, falou-nos em ir para a África, para Angola. Dizia que aquilo lá era uma maravilha, que a nota dela dava para ficar em Luanda ou noutra cidade da sua preferência. Convenceu-nos e começou a tratar dos papéis.

    – Ó tia Paixão, o meu marido deve estar mesmo a chegar. Combinámos que viria cá buscar-me para ir tratar das minhas plantas, e dar um arranjo à casa. De caminho, deixamo-la em Muros Baixos. Faço rapidamente o almoço, comemos e saímos. Num instante estamos lá. Conta--me depois o resto da história…

    Por: Nuno Afonso

     

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