Os sonhos podem esperar
A Matilde nasceu à primeira hora duma borrascosa madrugada de Abril. Na simbologia de muitos povos, a presença da chuva augura felicidade. Esteve para chamar-se Vitória pela heróica irrupção neste mundo de rotinas consentidas e desmazelos irresponsáveis, logrando assim o direito a uma vida plena, não necessariamente isenta de dificuldades. Entre numerosas hipóteses que se aventaram, prevaleceu Matilde, um nome de ressonâncias históricas e evocações familiares mais ou menos próximas.
No segundo aniversário da Matilde, a mãe e a avó materna prepararam, com amor, uma festa para a qual convidaram familiares e amigos bem como as crianças, meninas e rapazes, da vizinhança. Além das comidas e bebidas por hábito servidas em ocasiões que tais, ampliaram a oferta e introduziram novidades: havia canapés variados, gelatinas de diversos sabores, doces e gelados, tudo muito apelativo e disposto com esmero. Num recanto da sala, preparou-se o espaço dos mais pequenos, afinal, os donos da festa: pufs, jogos, brinquedos e, ao fundo, um cenário em que a avó pintou animais personificados, bosques inundados de sol, nuvens a vogar num céu de azul intenso. Feito para criar ambiente aos mais pequenos, foram, no entanto, os adultos que mais elogiaram o "quadro":
– Está muito lindo! Quem fez esta maravilha?
Outros, mais práticos, tinham leitura diversa:
– Em quanto ficou a decoração?
A avó, modestamente, confessou que fora ela a autora do que julgavam ser "uma maravilha" e que deveria ter custado"os olhos da cara".
– Não sabia que tínhamos uma artista na família! – mimoseou-a uma prima, reconhecendo, explicitamente, ter sido privada desse talento.
No jardim, as meninas brincavam com a aniversariante enquanto não era chegada a hora de se abeirarem da mesa, posta no andar superior. Os rapazes, em clara minoria, entretinham-se a dar pontapés num grande balão azul, muito leve, mais adequado às feminis características da Matilde do que à pretensa força dos projectos de homem que ainda eram, incapazes de o adaptarem a outro tipo de diversão. Os adultos aproveitavam este ocasional encontro para trocarem informações acerca dos respectivos projectos de vida, para exprimirem os seus pontos de vista sobre a realidade nacional e internacional, enquanto se dedicavam aos aperitivos, talvez a parte mais agradável de qualquer convívio, precisamente porque é o prenúncio da festa. Dir-se-ia que o Verão chegara mais cedo, porque o sol aquecia e uma brisa muito ligeira parecia adrede a ele associada para dar aos seres humanos conforto e animação. De quando em vez, chegava alguém, todos se cumprimentavam e abriam espaços para os recém-vindos.
 |
Ilustração RUI LAIGINHA |
Já os convivas se encontravam à volta da mesa e eis que a campainha retiniu. A avó encaminhou-se para o portão. Diante de si estava um rapaz, um pouco mais encorpado do que os restantes e que ela não reconheceu. Os miúdos, que já se encontravam na festa, também desceram, movidos pela natural curiosidade, e, ao reconhecerem o amigo, foram ao seu encontro:
– Eu sou o Samuel, neto da Dª Dulce, e queria dar um recado ao Pedro… – adiantou o rapaz com timidez.
– Entra! – convidou a dona da casa. – Só não te convidei antes, porque já és mais crescido…
– Mas eu até sou mais novo do que o Pedro – explicou ele, olhando para o maior dos rapazes.
Receoso de perder a companhia do amigo, o Pedro incentivou-o com um argumento que julgou em absoluto convincente:
– Entra, Samuel, há batatas fritas.
– Mas eu não fui convidado – insistiu o outro. Só queria saber quando vens, para brincarmos.
– Desculpa o meu engano, mas faço gosto em que venhas também à festinha da Matilde. – repetiu a avó, abrindo o portão. – Tu estás muito crescido! Pensei que eras bem mais velho do que os teus amigos.
O moço hesitou ainda, mas acabou por aceitar e foram, todos contentes, juntar-se ao resto da criançada. Entretiveram-se como puderam no meio de muitas meninas, mas tiveram a compensação de acompanhar, pela televisão, o jogo de futebol em que o Porto derrotou copiosamente o Vitória de Setúbal para o campeonato, vibrando com os melhores lances e tecendo comentários próprios de especialistas na matéria.
Quando a partida acabou, já a festa esmorecia. Aos poucos, despediam-se os mais novos e logo os crescidos que moravam longe; em seguida eram os jovens que ainda tinham outro programa para essa noite; só bem tarde saíram os últimos. A família de todos se despediu e ninguém logrou convencer a Matilde de que era preciso descansar. Chorou abundantemente quando as suas amiguinhas Patrícia, Catarina e Fabiana se foram embora.
– Não, chores, minha querida! Amanhã voltamos para brincar contigo! – dizia a Fabiana com ar de adulta precoce.
Mas logo que elas se foram, a Matilde retomou a brincadeira e só o apagar das luzes foi capaz de lhe vencer o ânimo. Só os adultos encarecem os sonhos.
Por:
Nuno Afonso
|