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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-11-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Vassili

    Estava uma noite escura como a boca de um lobo, que a lâmpada de iluminação pública ali próxima mal conseguia iludir. O relógio aproximava-se das onze horas, tempo de procurar o aconchego do leito.

    Subitamente a campainha da porta retiniu, facto insólito em casa de pessoas que não têm hábitos de vida nocturna, razão para sobressalto, não andassem os filhos por fora. Passa tanta coisa pela cabeça das pessoas em tais situações! «Teria havido algum acidente com eles?. Não, talvez seja o vizinho do lado a comunicar que deixámos as luzes do carro acesas, a perguntar se a cadelinha está do nosso lado, a dizer que esteve alguém à nossa procura, não estávamos em casa, deixou um número de telefone, faça favor de ver». «Pode ser algum familiar que chegou de fora e o transporte tenha demorado mais do que a conta». «Não será alguém a pedir auxílio?».

    O intercomunicador deixou de funcionar e recomenda a prudência que não haja pressa em tais situações. Aguardo que se faça ouvir o segundo toque. Demorou tanto que julguei terem desistido. Mas quem quer que fosse premiu novamente o botão. Receoso, saio pela porta das traseiras na presunção de que o risco é proporcional à distância. No primeiro momento não consigo distinguir mais do que um vulto imóvel e silencioso. Arrisco ainda uns passos, esforço a vista e consigo entrever, um homem de estatura acima da média que agora levanta o braço direito e diz para me tranquilizar:

    – Ucraniano.

    – Ah é o Vassili? Então o que se passa?

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Junto ao portão cumprimenta e sorri. Já nos conhecemos há três anos, creio bem. Um dia passou por aqui, andávamos agachados a mondar o jardim, tentando arrancar umas ervas daninhas invasoras, finas mas atrevidas, capazes de sobrepujar a grama mais resistente. Oferecia-se para trabalhar, não importava em quê. «Quer ajudar-nos a arrancar estas ervas?». O homem não esperou segundo convite, pôs-se também de cócoras , pegou no gancho que lhe estendemos e imitou o nosso procedimento... Só suspendeu a actividade quando a luz do dia tornou impossível a continuação da tarefa. Jantou connosco e levou consigo roupa usada e algum dinheiro para pagar a dormida na penson. «Difícil arranjar trabalho», – foi dizendo e relatou, no seu português arrevesado, as vicissitudes por que estava a passar. Perguntou se podia voltar no dia seguinte e, perante a resposta afirmativa, prometeu que viria ao princípio da tarde. Apareceu quando já mal se via. Comeu e partiu. O ano passado voltou, mas não havia o que fazer. Disse-nos que tinha visto um anúncio, no jornal, para trabalhar numa serração em Mirandela, que telefonara para lá e apanharia a camioneta no dia seguinte. «Boa sorte» – desejámos-lhe.

    – Sempre foi para Mirandela?

    – Non trabalho en Mirandelo. Non. Patron diz chegou atrasado, vaga já ocupado.

    – E agora o que é que faz?

    Encolheu os ombros. Não era disso que pretendia falar. Estava atrapalhado e, ao mesmo tempo, eufórico. Queria dizer-nos que a irmã, que vive na Ucrânia, tal como a mãe, a esposa e dois filhos do Vassili, tinha ganho, numa qualquer promoção, dois lugares para uma viagem à Madeira. O autocarro chegaria no domingo seguinte a Lisboa. A feliz contemplada, que é solteira, ofereceu os bilhetes à mãe e ao filho do Vassili, um rapaz de quinze anos, estudante lá na cidade natal.

    – Minha irmã diz não pode vir por trabalho, mas non é isso, ela gosta muito do sobrinho...

    – Sem falar da sua mãe, claro.

    – Sim. Eles fica Lisboa. Outras pessoas segue para Madero. Quero muito ver meu filho e mia mãe...

    – Tem recebido notícias do seu filho, da sua família?, – pergunta a minha esposa que entretanto se juntara a nós, preocupada com a demora.

    – Sim, senhora. Meu filho está muito alto, assim... – e faz um gesto a mostrar que já é maior do que ele. – Estuda muito bom.. Quando eu saiu da Ucrânia era inda pequeno, agora é homem.

    Trazia um blusão de couro que teria recebido de alguém não muito longe dali; admitiu, no entanto, que devia levar uma camisola e melhor calçado. Mas o Vassili era bem mais alto do que eu. A minha esposa foi buscar umas peças de roupa do nosso filho que ele avaliou, encostando-as ao tronco. Entendeu que serviam e ficou com elas. Levou também uns euros para ajudar à viagem para Lisboa. Não tinha fome mas aceitou uma peça de fruta.

    – Non banana... Banana faz alergia, garganta aperta, non poder respirar.

    Recebeu uma maçã e despediu-se.

    – Muito obrigado.

    – Não tem de quê. Desejamos que encontre bem os seus familiares e que eles tenham uma boa estada em Portugal.

    Decorreram duas ou três semanas e uma destas manhãs, ao sair, reparei num pequeno embrulho bem junto ao portão. Abri-o. Continha um ícone muito bonito, representando a Virgem Maria. Nenhuma mensagem a acompanhar, mas não tive dúvidas sobre a identidade do ofertante.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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