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    Arquivo: Edição de 31-03-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    S. Lourenço e as ferrovias

    Os meus colegas de gabinete, ermesindenses de “quatro costados” (apesar de só um deles ser nascido nesta cidade), ficam deliciados cada vez que aparece uma foto antiga de Ermesinde. Sempre que isso acontece lá ficam eles a “desfolhar” lembranças do que ainda recordam e identificam nas suas memórias de infância e juventude. Neste caso, eu serei a única dos quatro que tenho como berço de crescimento uma das freguesias da Maia, Vermoim (e aqui é idêntica a minha reação quando o Vermoim Vintage coloca fotos duma época de registos de memória que também me transportam à minha juventude). No entanto, também é desde pequenita que Ermesinde deixou de me ser desconhecida, tendo em conta que quando os meus pais queriam ir “à sua terra” perguntavam-nos: querem ir ver as avós? Dizíamos logo que sim mas sabíamos a “contra-senha” – nós, os seis filhos tínhamos que ir a pé para Ermesinde e nada de pedir colo ou dizer que estávamos cansados. Cumpríamos e lá íamos com o pai à frente, que levava o “7º elemento” (a mais nova), ao colo e/ou às “carrachuças” seguido dos outros, dois a dois, numa fila que era “fechada” pela mãe, que garantia a nossa segurança.

    Já na altura, ir de comboio por Ermesinde era mais barato porque se poupava a viagem para o Porto e essa despesa era importante no orçamento da família pois falávamos, ao todo, de nove pessoas. Ajudava o facto da nossa avó materna viver perto da estação do Marco, na “surriba” (que agora está transformada em avenida) que nos era de uma grande utilidade por ser em terra batida – dava mais adrenalina ao fazermos rolar os carros de rolamentos nas nossas brincadeiras de infância, que muitas vezes originavam a queda que nos divertia a todos. Ninguém pensava em chorar e os joelhos eram lavados com a água da “nascente” que existia lá no quintal. Desta forma, perto da estação o ruído dos comboios era-nos familiar e ver passar ferroviários num vaivém para o trabalho ou de regresso a suas casas era também habitual.

    E eu andava mortinha por cruzar gente com a minha escrita onde pudesse resumir “pedacinhos de vida” de pessoas que vivem e sobrevivem das ferrovias. Isso tornou-se possível quando fui ao Lar de S. Lourenço dar um beijinho à D.ª Piedade, uma amiga de infância da minha mãe (que a vida transformou em “parceira”) que faz daquele espaço o seu “lar” porque diz que é assim que se sente lá dentro. Permitem-lhe passar lá o seu dia e ajudar quem dela necessita e isto quer seja auxiliando nas refeições, nos trabalhos manuais ou o que quer lhe solicitem. Fazem-na sentir útil, mesmo com os seus 79 anos de idade. No bocadinho que ali fiquei a falar com ela lembrava-se de, aos 8 anos de idade, ter precisado de “abandonar” a sua casinha lá na aldeia para vir com os pais e os irmãos para Ermesinde. Esta mudança iria permitir que o seu pai, condutor de máquinas da CP, visse mais assiduamente a sua família porque isto de se ser ferroviário tinha o seu grande “senão” – os ferroviários andavam “desterrados” por esse país fora, onde houvesse carris, onde houvesse comboios.

    Foto GL
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    Ermesinde tornava-se uma cidade dormitório e fulcral para que os “encontros de família” ocorressem com mais frequência pois ali convergiam todas as “linhas” e cruzavam-se as famílias dos ferroviários que vinham à estação entregar as cestas de almoço que lhes chegariam às mãos através do “papa-almoços” – o comboio da meia hora. A D.ª Piedade lembrava que sempre morou na Travagem e quando o seu irmão Francisco (que também era condutor de máquinas) passava no comboio que ia para S. Romão acenava – o “sinal” de que a sua mãe precisava para lhe preparar rapidamente o café quentinho que lhe levava à estação para ele tomar na viagem. Foi com emoção que lembrava que à morte da sua mãe, aquele seu irmão nunca mais acenou naquela passagem pois de certeza que nunca mais o café teria o gostinho do seu amor.

    E a conversa precisava de ficar por ali porque seguia-se a comoção de associar a esta lembrança o outro irmão, Júlio, revisor, cujo comboio, onde ia a trabalhar, ficou soterrado por um túnel que desabou, em Midões, ceifando-lhe a vida ainda homem novo. São mesmo assim as ferrovias da vida, do passado e do presente e, se calhar, do futuro – gente que escolhe viver e sobreviver em cima delas e através delas, gente que decide terminar o seu percurso de vida por baixo delas, gente que as escolhe como meios de locomoção para partir em busca de sonhos e de esperanças, que se constroem ou se desvanecem.

    Nesta pequena tertúlia feita numa mesa onde se desensarilhavam novelos de lã, estava lá “gente bonita”, que amadureceu com o tempo e que me deu a perceber que a maior parte, de uma forma ou de outra teve familiares ligados aos caminhos que, ainda hoje, são de ferro. Agora a vida juntou-os naquele espaço em que se dedicam aos seus hobbies e o Sr. Valdrez fez o favor de registar em fotografia a pessoa da minha história e representa também esta “gente rija”, que ao longo da sua vida fez da sua casa um lar. Agora, porque começam a ficar cansados e já lhes custa visitar as suas famílias precisaram fazem deste lar a sua casa. É bonito ver que disponibilizam o seu saber junto de quem gosta de aprender e dão razão à minha avó que respondia zangada a quem lhe chamava velha: «– Velhos são os trapos!».

    Eu, no bocadinho em que estive ali no meio destas pessoas “madurinhas” lembrei-me de uma leitura que me deu que pensar sobre um provérbio aborígene – «somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem. O nosso objetivo é observar, crescer, amar… e depois vamos para casa». Efetivamente, quer seja de nossa vontade ou não, essa será uma certeza, esse será o nosso destino. Nesta caminhada eu só espero que nesse tempo – se puder ser no meu tempo, oxalá existam este tipo de casas, que cada vez mais precisamos de ter disponíveis para as transformarmos no nosso “lar”, antes de partirmos definitivamente... para “casa”

    Por: Glória Leitão

     

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