O silêncio do mar
Do alto da arriba ou do convés superior de um transatlântico pode ver-se o mar até à fímbria mais longínqua do horizonte, o movimento incessante das ondas que ora descem parecendo submergir os barcos de pesca ou de lazer, ora sobem erguendo-os à crista como se fossem brinquedos de papel em mão de criança para, de novo, os ocultarem, aquela indefinível sensação de pequenez do homem diante da vastidão imensa que só em parte consegue compreender. Delicioso espetáculo, lisonja para os sentidos de quem observa e com ele se compraz. Nos dias de tempestade, embora de modo diferente, o mar preserva o encanto na fúria do vento que encrespa a superfície da água, no encapelar das vagas, no ímpeto do elemento líquido contra as zonas da costa e os que ousam arriscar as vidas para garantir o sustento próprio e o das suas famílias, à mistura com a angústia pelo destino desses irmãos para quem o mar é fonte de vida e abismo iminente de perdição.
Além de indispensável à vida humana, a água exerce sobre todos enorme atração, quaisquer que sejam as circunstâncias: as crianças desenham rios e pintam de azul os lagos e o mar, em dias estivais é à beira dos rios e do mar que melhor nos sentimos. Através de rios, lagos e oceanos, povos antigos souberam descobrir formas de chegar mais longe, para entreter relações comerciais, políticas, religiosas e outras, alterando geografias humanas e culturais, povoando e repovoando terras ignotas.
Se considerarmos que a ação nefasta do mar resulta, com frequência, de outros agentes naturais como o vento, as marés, os deslocamentos das placas tectónicas e de erupções vulcânicas, concluímos que ele foi e continua a ser de enorme utilidade para os homens e a sua atividade civilizadora. O mar tem sido inspirador da criação literária, tal como a terra, nosso elemento natural, ou mais do que ela pelos mistérios que encerra e que, cedo, fascinaram e desafiaram o homem independentemente de fenómenos que, tantas vezes, colocaram em perigo essa imagem positiva. Sob a aparência conhecida do mar há um mundo, de que a maioria dos humanos nem suspeita, de seres que convivem ou se opõem, jogos de ocultação e de agressão, de traições e de enganos, de luta feroz pela sobrevivência e pela supremacia. Como escrevia Sophia de Mello Breyner, num dos seus maravilhosos poemas em que o mar era leitmotiv, «no fundo do mar, há brancos horrores…». Vercors, pseudónimo do escritor francês Jean Bruller, deu à obra literária que mais o notabilizou o título “Le silence de la mer” (O silêncio do mar), escrito durante a ocupação da França pelas forças nazis, como metáfora da Resistência do povo francês face ao agressor que, não sendo muito visível à superfície, ocultava nas dobras desse silêncio uma intensa agitação patriótica. A vida, na França ocupada, decorria com aparente normalidade a ocultar uma intensa agitação materializada em atos de sabotagem, redes de apoio aos combatentes, de evasão aos prisioneiros aliados, de caça aos aviadores inimigos acidentados, mensagens codificadas e uma panóplia de recursos que muito contribuíram para a derrota do ocupante.
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A sociedade portuguesa tem vivido momentos de grandes dificuldades e de enorme indignação relativamente aos sacrifícios que nos têm sido impostos. Para quem venha do exterior assemelha-se à de países política e socialmente estáveis. Não há violência nas ruas e o discurso político e sindical mantém-se dentro de regras cívicas normais. No entanto, é óbvio o desgaste das instituições e o ambiente deletério que, a alguém mais atento, não passará, com certeza, despercebido. Aumenta o nervosismo e a conflitualidade em vários aspetos da vida em conjunto. A atitude menos refletida de um condutor pode dar origem a agressões de graves consequências; o que seria apenas uma não consonância de pontos de vista, em qualquer lugar público, deriva, com frequência, em altercações de que podem resultar graves consequências; aumentam os crimes intrafamiliares, os assaltos violentos, as burlas cujas vítimas são, via de regra, os mais frágeis (idosos pouco instruídos e sem apoio familiar imediato). Há lugares onde os assaltos são de tal modo habituais que as pessoas evitam frequentá-los. Eram sítios muito conhecidos, pacíficos, luminosos, com lojas tradicionais e muito frequentadas, bons restaurantes, equipamentos sociais de renome. Aparentemente tudo continua igual, salvo o encerramento de um ou outro estabelecimento comercial.
A um desses lugares, costumo levar a minha neta para uma atividade extraescolar. Enquanto decorre, espero-a dentro do automóvel e vou buscá-la uma hora depois. O trânsito de pessoas e de automóveis é bastante intenso na rua onde permaneço.
Nessas ocasiões, levo comigo um livro ou jornal que reduz a espera a mera síncope temporal. Ainda que se nos afigure, não há um dia igual a outro, só na aparência assim é. Deixo o carro na mesma rua, saio com a menina tendo o cuidado de trancar o veículo e de verificar manualmente se, de facto, está fechado. No regresso, procedo ao contrário, instalo-me no interior e aguardo o momento de ir buscá-la.
Há umas semanas, transportado ao universo do livro que lia, fui despertado bruscamente por um ruído como de uma pancada na viatura, quase no mesmo instante em que passava um rapaz alto de mochila às costas, andar ligeiro e atabalhoado. Saí para verificar se, do suposto impacto, teria resultado algum dano. A porta traseira do lado esquerdo estava aberta. O rapaz seguia já uns bons metros à frente mas buzinei para o advertir de que a sua atitude não tinha sido correta. Sem voltar a cabeça, fez um gesto de enfado e desrespeito. Repeti a advertência duas ou três vezes e obtive idêntico retorno.
Decorreram largos minutos. Fui buscar a minha neta, coloquei-a na cadeirinha e apertei-lhe o cinto. Sentei-me e liguei o carro. Foi então que, inesperadamente, o rapaz apareceu como que saído dum sonho. Todavia, era bem real. Não tinha um ar agressivo, parecia querer esclarecer o que havia feito. Entreabri a porta e, ato contínuo, o indivíduo encostou-me uma faca na barriga:
– Passa p’ra cá o dinheiro!
– Não trago dinheiro – respondi, meio aturdido ainda pelo inesperado da situação. Mas consegui apertar--lhe o pulso encostando-lho no batente da porta.
– Não tens dinheiro?! – conseguiu, ainda, dizer. E, ato contínuo, desatou a correr dasabaladamente.
Não tive tempo de averiguar o que motivou a súbita mudança operada na mente do jovem. Provavelmente, ter-se-á apercebido de pessoas que passavam e poderiam intervir. Quanto a mim, a preocupação imediata foi olhar para a minha neta. Dois rios de lágrimas corriam-lhe pelo rosto.
– Não foi nada, filha. Já passou.
– Eu gosto muito de ti, vovô – foi a resposta dela.
Arranquei e, durante o trajeto, acalmou e recuperou a tranquilidade.
Suponho que a intenção do jovem seria extorquir-me dinheiro e valores que pudesse trazer comigo. No entanto, deixou-me uma grande lição: redobrar os cuidados e evitar situações potencialmente perigosas.
Por:
Nuno Afonso
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