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    Arquivo: Edição de 17-08-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    O espectro

    Num domingo de agosto, que tem o dígito cinco, e enquanto o dia começa a entrar lentamente no meu cantinho das ideias, eu precisava de refletir e, se calhar, identificar o motivo porque me sinto uma mulher tão feliz quando, para tanta gente “de fora de mim” poderão achá-lo até tonto ou inexplicável pois, a seu ver e alguns fundamentando e julgando-me por um passado, outros por tudo o que me está associado de encargos e responsabilidades ainda por cumprir, achem que sou e serei um “péssimo negócio” – motivo porque, se calhar, pensem que eu devia era andar taciturna e cabisbaixa.

    Lógico que eu poderia adotar uma frase que um dia li e alguém publicou como sendo de Bob Marley: «Preocupe-se mais com a sua consciência do que com a sua reputação porque, a sua consciência é o que você é e a sua reputação é o que os outros pensam de si. O que os outros pensam de si é um problema deles». Encaro o pensamento como um desafio e, por hábito, faço mentalmente o gráfico de Ishikawa (diagrama de causa/efeito ou “espinha de peixe”), aquele que ajuda a procurar a causa para um problema e logo a sua solução (melhora contínua) – no meu caso a resposta curiosa para um dos meus parvinhos “porquês”.

    Foi desta forma que encontrei uma das justificações plausíveis para este meu “problema”: andar permanentemente de “taxa arreganhada” – sempre que posso, às vezes e também quando não posso ou até quando não deveria.

    Terá tudo a ver com o facto de eu ter passado cerca de três anos com a terrível sensação de que estava “morta” por dentro e também “morta para os outros”? E aqui se calhar também agora, à distância, posso dizer que é agonizante a sensação de que estamos “em coma” e as pessoas que estão à nossa volta pensam que já não “nos safamos” e nos passam o seu “atestado de óbito”.

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    Confesso que me assusto muitas vezes quando penso que haverá pessoas que estando em coma vegetativo, possam ouvir o que se diz porque, a tendência de quem as visita será pensar que não ouvem e começam entre elas a falar de coisas que as possam fazer sofrer e, porque estão prisioneiras de um “silêncio” (o tal estado de coma), tornam-nas impotentes para falar e defender-se impedindo-as de poderem dizer – “não foi bem assim”, “isso não é verdade” ou ainda “obrigado, por pensares assim” ou, “obrigado por sentires assim”, e tantas coisas mais.

    Eu acho que foi tudo isto que há dois anos me impulsionou a entrar no escritório de uma funerária que sempre encontro a caminho do meu trabalho, em Ermesinde, e explicando-lhes a forma como gostaria que dessem fim ao meu corpo, pedir para me dizerem se isso era possível, o quanto custaria, por forma a deixar um dia tudo organizadinho e de acordo com a minha vontade.

    O senhor que me atendeu olhava um pouco atónito para mim e perguntava-me se eu pensava que ia morrer ou ainda se estava com alguma doença. Respondi-lhe que graças a Deus não, mas era exatamente por isso que queria resolver essa questão, e enquanto tinha saúde, porque se não podemos escolher como morremos, pelo menos eu podia escolher o fim que queria dessem ao meu corpo – acima de tudo porque é em vida que quero saber e sentir o que posso receber como sentimento das pessoas, olhos nos olhos, seja ele qual for.

    Agora, mesmo com o cartão de compromisso que ele me deu e que se encontra fechado num envelope junto com simples legados que deixo às minhas filhas, olho para o colorido da vida e tenho que encerrar rapidamente esta reflexão (prometi a mim mesma que encurtava as crónicas sempre que isso me fosse possível), mas antes disso lembro-me que cada vez que passo pela funerária e me cruzo com o “armador” que me atendeu, quando nos cumprimentamos com o cordial “bom dia” sorrimos os dois, se calhar do caricato da situação, e eu penso que até ele não quer que eu “morra, para que a vida dele corra”.

    Costumo também dizer muitas vezes que a minha “fuga para a frente” é mesmo porque eu, além de conhecer o caminho do “inferno”, aquele que começa dentro de nós, também fui “atriz principal” de um espetáculo terrível que é ser-se espetadora da própria “morte anunciada” por nós e pelos outros mesmo quando ainda estamos vivos. Nos bastidores deste palco da vida aprendi que o único direito que nos dão e nós também damos aos outros é o de respirar, em agonia até que nos possam ir por uma coroa de flores numa qualquer sepultura em que dizemos uns aos outros: “era boa pessoa”, lembrando nesses parcos momentos os episódios engraçados das suas/nossas existências.

    Se calhar também tive esse tipo de atitude perante os outros, e como não lhes posso pedir desculpa tento, pelo menos agora, ter muito cuidado para corrigir isso e mudar, e deve ser também por este meu “estranho sentir” que me custa muito ir a funerais e tento compensar essa ausência, com a sensação de que esta visita não será útil porque em vida tentei de alguma forma “estar lá quando era precisa”, ainda mais que eu tento nunca “enterrar” as pessoas que de alguma forma me marcaram e que ficam alojadas num cantinho do meu coração que lhes está reservado.

    São 07h40 e avizinha-se um domingo lindo em que decidi que hoje vou vestir uma peça de roupa, para mim especial – um vestido de que já ninguém precisava e que uma grande senhora me arranjou (uma senhora sempre com ar de menina), que por acaso mora na cidade onde trabalho, Ermesinde, e que se atreveu a desafiar o espetro do desemprego e criar o seu próprio negócio abrindo um simpático atelier de arranjos de costura, na cidade que me acolhe para o meu descanso (Maia). Lembro-me de me dizer, sorrindo naquele seu ar cansado de quem tem muito trabalho mas nunca nega o sorriso a quem a visita como cliente ou como amiga: «D.ª Glória, cortamos e transformamos o vestido em saia e vai-lhe ficar bem».

    Esta peça de roupa recuperada é muito importante para mim porque além de estar assente em gestos de generosidade, no seu fundo branco tem desenhadas flores alegres, pintadas com as cores do arco-íris, aquelas com que ando a alegrar o meu caminho e o dos outros: os que caminham ao meu lado e os que precisam de ir à minha frente. Aos que caminham mais atrás, porque têm um passo mais lento, tento não me esquecer de perguntar: «Precisas de ajuda?».

    Por fim digo à Susana (a tal senhora com ar de menina), que ela tinha razão – a saia fica-me bem, faz-me sentir alegre, faz-me sentir feliz. Ainda me atrevo a pedir-lhe que, por favor, continue a sorrir porque, em muitos casos, sendo o máximo que podemos oferecer aos outros, não nos damos conta que a nossa capacidade de sorrir, numa grande parte das vezes nos salva a nós, de nós mesmos e aos outros a quem muitas vezes ninguém tem tempo de sorrir.

    Bom domingo!

    [email protected]

    Por: Glória Leitão

     

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