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Edição de 30-04-2024
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    Arquivo: Edição de 30-05-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Homem das ligas e guardador de amoras

    No leve recato da noite velha e no bulício afanoso do dia a dia agrícola, a bica nunca deixou de jorrar desde que, nos primeiros anos do século XX, o chafariz foi plantado em lugar de honra do largo onde confluem o caminho que vem da cidade e do alto da serra e o que chega de Vila Boa, de Conlelas e de vários lugares do termo. O ponto de encontro dos dois caminhos verifica-se alguns metros mais adiante onde o desnível entre eles de todo se esbate convertendo-se num só, até ao cabo do povo e em direção a Carrazedo. À entrada no largo, ainda é notória a diferença, como facilmente notaria quem, chegando de Bragança ou de “por i acima” (1) dobrasse para a direita, à esquina da antiga Casa Paroquial – mais tarde Casa da Escola, presentemente Casa do Povo – e infletisse de novo à direita, invertendo a direção da marcha. A empena dessa casa voltada para o largo era alta com duas janelas simétricas que davam claridade respetivamente à sala e ao quarto principal da antiga residência e permitiam uma observação privilegiada de tudo quanto se passava no largo. Embora o telhado tivesse quatro águas, era nesse beiral que faziam ninho as andorinhas, num espaço que pecava por defeito e obrigava a sobreposições. Por isso, quando elas chegavam, anunciando a primavera, o largo enchia-se de chilreios e de alegres coreografias.

    Na época da construção do fontanário, em 1904, o bom senso fez precavido quem a projetou e presidiu à sua execução: foi erguido também um muro com, aproximadamente, metro e meio de altura, em pedra de xisto autóctone, que tinha a tripla função de sustentar o caminho de cima permitindo segurança para a circulação de pessoas, de animais e de carros de bois mormente quando ali passavam com muito carrego; de nivelar a envolvência do chafariz ao caminho de baixo e à maior parte da área do largo; de proporcionar breve repouso ao fatigado aldeão ou aos ocasionais ociosos em cavaqueiras amenas nas tardes calmosas de estio ou aos domingos depois da Missa enquanto o representante da Junta de Freguesia anunciava ao povo as decisões tomadas ou a propor e se procedia à arrematação da “esmola das almas” (2) e de outras ofertas em géneros que as pessoas faziam aos santos da sua particular devoção. O dito muro corria paralelo ao chafariz e para além dele, terminando numa espécie de meio arco para a direita pouco antes do encontro dos dois caminhos. No interior desse meio arco plantaram uma amoreira que foi crescendo e frutificando e se tornou a melhor amiga da miudagem, não obstante suportar muitas lapadas (3) dos que pretendiam roubar-lhe alguns dos seus saborosos frutos. Separado do fontanário o bastante para que as pessoas circulassem à vontade em ambos os sentidos, o muro dispunha de uma fiada de pequenas lajes, a cerca de 30 centímetros do chão, onde mulheres e crianças que vinham encher os cântaros ou cântaras (4) pudessem descansar enquanto esperavam. Do lado oposto, havia um muro mais baixo, com passagem para o lavadouro a céu aberto transposto um degrau para um nível inferior para onde tinha sido canalizado o escorrimento do fontanário e prosseguia ainda alguns metros até à entrada do pátio dos Vilaros. Um pouco atrás, tinham plantado outra amoreira, perpendicular à já referida, que nunca deu fruto mas prodigalizava também larga sombra a quem por ali tomava assento em horas de canícula.

    Era esse o lugar onde o tio Manuel Gaiteiro ou tio Papim, como mais comummente lhe chamavam, estabelecia, diariamente, a sua oficina. Vivia em casa humilde, herdada dos antepassados, no correr de habitações que margeavam, a norte, o caminho de cima, e vencia a pequena distância entre a sua morada e o sítio escolhido apoiado num par de muletas que dispunha, uma de cada lado, ao alcance das mãos. Fazia ligas para chapéus de palha a que ninguém punha defeito e mandava depois para o Sá de Castrelos, um dos poucos alfaiates das redondezas, que lhes dava os convenientes acabamentos. A matéria-prima das ligas era palha de serôdio (5) previamente demolhada e por ele entrançada a preceito. Tal era a sua aplicação e assiduidade que dir-se-ia elemento da paisagem, a nota humana permanente na harmonia do largo. Daí que, por certo inconscientemente, ele era o dono do eido. (6) Quem passava não esquecia o cumprimento:

    - Deus le dê bôs dias, tio Manuel!.

    - Bôs dias le dê Deus! – respondia o nosso homem.

    Levantava os olhos a reconhecer quem lhe dirigia a palavra e logo os baixava para o trabalho. A conversa não ia além disso exceto, quando muito, um rotineiro comentário acerca do tempo que fazia, considerando que as suas limitações físicas eram óbice claro a outros centros de interesse comuns. Se fosse mulher, perguntar-lhe-ia porventura, se a Lhalha, – Maria do Rosário – a filha que emigrara para o Brasil e era a “menina dos seus olhos”, teria escrevido (7) e se as notícias eram boas. Mais raramente alguém perguntava pelo filho, o João Grilo, que também seguira o mesmo caminho. De resto, sobressaltava-se quando os miúdos que frequentavam a escola vinham cá fora satisfazer as suas necessidades ou nos intervalos da manhã e da tarde em que corriam, gritavam e engalfinhavam-se quebrando a calma rotineira. Já perto do fim do ano letivo quando as amoras se tingiam de negro e espreitavam por entre os ramos da amoreira de cima num desafio, punha-se em guarda, simulando evitar que as derrubassem à pedrada já que nenhum se atrevia a subir à árvore para as colher. Quando alguém ousava infringir a proibição, soltava o verbo acerado e ameaçava o atrevido com a cajata (8):

    - Ah grandes cães, ‘speraide (9) que já vos dou as môras! (10)

    E, com a mão direita, brandia a muleta respetiva ameaçando levantar-se. Claro está que os garotos não lhe davam ouvidos pois bem de mais sabiam que o homem não poderia ir atrás deles. À cautela, porém, corriam a apanhar as amoras que haviam caído, lambuzavam-se todos, passavam as mãos na água do tanque e esfregavam-nas às calças. Por detrás da janela da sala de aula, a professora mal conseguia conter o riso embora, no regresso da turma, ralhasse asperamente aos prevaricadores. Também eles, de olhos no chão, fingiam acreditar, todavia, na primeira oportunidade, recomeçavam as lapadas, as ameaças do tio Papim, a corrida gulosa às amoras.

    Como tudo muda nesta vida, o tio Papim cessou o fabrico das ligas e a vigilância à pródiga amoreira. Adoeceu e partiu na hora que Deus lhe reservara. Beneficiando de um maior desafogo económico, os aldeões deixaram, pouco a pouco, de usar aqueles chapéus artesanais, como deixaram de cozer o pão à moda tradicional, de usar roupas de linho e de lã, preferindo adquiri-los nas feiras e nas lojas da cidade se não mesmo aos vendedores motorizados que percorriam, agora, as aldeias. Escolheram a proa (11) e o comodismo em prejuízo da qualidade. Um chapéu de estilo moderno com fita “à maneira” era agora o preferido. A amoreira continuou a cobrir-se, anualmente, daqueles maravilhosos frutos que os adultos invejavam mas tinham vergonha de colher e que deliciavam os mais pequenos.

    O largo conservou ainda por algum tempo a forma antiga mas, um dia, um representante da Junta de Freguesia diligenciou para que fosse modificado com o argumento de facilitar o trânsito dos automóveis, incluindo os veículos dos transportes públicos que, três vezes por dia, vinham à aldeia e necessitavam de mais espaço, mas de que ele era o maior beneficiário porque as modificações introduzidas vieram permitir-lhe estacionamento, em espaço público, para as suas máquinas agrícolas. Anos depois, o calcetamento dos caminhos transmutados em ruas completou o desfiguramento do antigo espaço.

    Passaram muitas gerações, extinguiu-se o ruído de milhões de passos, de risos, de gritos, de cantigas de roda dos mais pequenos, de cantares e danças dos segadores à boca da noite até que a patroa os chamasse para cear, de discussões e desavenças também. Do lugar aprazível, núcleo de uma comunidade viva, só resta o fontanário que continua a jorrar cercado de vazio e de recordações.

    (1) Expressão habitualmente usada para significar, de modo indefinido, sítios mais altos.

    (2) Resultado do peditório semanal, em géneros, por intenção das almas do Purgatório.

    (3) Pedradas.

    (4) Recipiente para transporte de líquidos com a capacidade de meio almude (12,5 litros), a cântara leva menos.

    (5) Espécie de trigo de desenvolvimento mais rápido, semeado na primavera.

    (6) Sítio, lugar.

    (7) Forma do particípio passado do verbo escrever assim usado naquela região.

    (8) Bengala, corruptela de cajado(a).

    (9) Esperai.

    (10) Pronúncia regional de amora.

    (11) Vaidade.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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