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    Arquivo: Edição de 10-07-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    O tempo não volta atrás

    A cada dia sentimo-nos mais surpreendidos com as realizações da Ciência e da Técnica. Hoje, os computadores apresentam-nos imagens virtuais tão próximas da realidade que tendemos a tomar umas pelas outras. Recentemente, um canal televisivo mostrou-nos um ser virtual que, além do grau de perfeição atingido e graças às técnicas de marketing, acabou por tornar-se idolatrado como qualquer figura pública, no seu país e no estrangeiro. Do Japão chegou a invenção, claro, país vanguardista em novidades eletrónicas. Já não se trata de imaginar personagens de uma obra literária como pessoas com as quais convivemos no dia a dia mas de “criar” um novo ser a que alguém atribuiu identidade própria e que passou a ter biografia disseminada pela força dos mass media. Se o procedimento tiver sequência, a vida social tornar-se-á, em extremo, complicada tanto mais que os ídolos com existência real já se nos tornaram mais íntimos do que os próprios familiares e amigos. Depois da cibernética, do dinheiro de plástico, do fast food, da informação e comunicação virtuais, chegará o dia em que até as ações, os pensamentos, as emoções e os sentimentos passarão ao domínio da virtualidade? A realidade aproximar-se-á tanto do mundo virtual que este obnubilará tudo quanto, até hoje, constituiu o nosso mundo? Que restará, depois, do que nos identifica como criaturas verdadeiras, humanas?

    A morte de um cantor ou ator famoso mobiliza, durante muitas horas e dias, verdadeiras multidões, revela cenas de um dramatismo pungente que, por norma, não ocorrem quando se perde um dos progenitores ou um irmão muito querido. Em sentido inverso, morrem, em Portugal, em lares e instituições diversas ou sozinhas em suas casas, centenas de pessoas que não recebem um ósculo de despedida, cujos corpos ninguém reclama nem acompanha à última morada. Na Santa Casa da Misericórdia, por exemplo, a Irmandade de S. Roque substitui-se aos familiares dos defuntos e as duas instituições concedem, voluntária e gratuitamente, um funeral e acompanhamento com o mínimo da dignidade que todo o ser humano merece àqueles que ninguém chora nem foram objeto de compaixão na reta final da sua existência. Não se sentem inquietos, caros leitores, perante tamanha aberração? Até quando os bons sentimentos prevalecerão sobre o que consideramos egoísmo, ingratidão, desumanização? Não estremecem quando, perante casos destes, alguém os justifica com expressões do tipo: “a vida moderna é assim…” ou “cuidar dos familiares mais idosos ou portadores de grave deficiência era dantes, agora os filhos ou cônjuges, ainda capazes, não têm tempo nem condições para lhes dar assistência…”. O meu compadre Manuel tem quase noventa anos, está preso a um leito, não reconhece os familiares mais próximos, emagreceu terrivelmente, tem o corpo em chagas a requerer cuidados permanentes. A minha comadre, pouco mais nova, esforça-se por minorar-lhe o sofrimento, contando com o apoio de enfermeiras que vêm de um Lar de Idosos e do Hospital Distrital. Compadece-se dele, parece estar de acordo quando dizem que “Deus se devia lembrar…” mas não quer pensar na hipótese de o perder. Um amor assim é sublime.

    Em Sociologia há um princípio basilar, a que já me referi em crónicas anteriores, segundo o qual os aspetos materiais da cultura mudam com maior rapidez do que os aspetos não materiais. Os últimos sessenta anos evidenciam-no com toda a clareza. Os avanços científicos e técnicos tornaram-se muitíssimo mais rápidos do que em iguais períodos no passado a tal ponto que fomos mudando também a nossa conceção de vida, as nossas referências morais e espirituais. A fragilidade do ser humano aumentou mas o progresso criou em nós uma ufania que não resiste às primeiras contrariedades, a uma doença grave, a uma depressão, à revelação de uma deficiência severa, às dificuldades que experimentamos no trabalho ou no relacionamento com o outro.

    Esquecidos os valores que dignificaram a natureza humana ao longo de séculos, sentimo-nos «caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento…» como cantou Geraldo Vandré (*), perdidos no deserto da vida sem bússola nem pontos de referência que nos ajudem a encontrar o rumo adequado. Várias têm sido as vozes, ética e moralmente autorizadas, a denunciar e lamentar a subversão do nosso universo espiritual, crise bem mais grave do que a correspondente económica. Como os cientistas ainda não descobriram Deus nos seus estudos nem os astronautas O encontraram nas suas viagens pelo espaço, declaram pura e simplesmente a sua inexistência. Ora, os valores que enformaram a nossa civilização tiveram como alicerce a crença numa entidade transcendente a que uns chamam Deus, outros Alá e ainda outros O Indizível. Neste espaço não importa a designação, interessa deixar claro que as religiões são a fonte dos princípios que têm orientado o homem no seu trajeto e têm garantido a harmonia na convivência social. Talvez a perda de crença religiosa determine em grande parte esse vazio que parece aumentar avassaladoramente no mundo atual, descaracterizando o homem enquanto criatura sagrada e colocando-o ao mesmo nível de um ser virtual. É urgente que se retomem os valores que fizeram a grandeza da nossa civilização ou se descubra uma fonte alternativa capaz de substituir os, até agora, existentes com vantagem, para que o mundo de amanhã não perca a beleza que ainda vamos descobrindo na obra que os crentes atribuem a Deus.

    (*) Retirado da canção “P’ra não dizer que não falei de flores” de Geraldo Vandré, à qual foi atribuído o 1º Prémio no Festival de Música da TV Record em 1966, ex-aequo com “A Banda” de Chico Buarque de Hollanda.

    Por: Nuno Afonso

     

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