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    Arquivo: Edição de 15-06-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Luta de classes ou democracia mais verdadeira?

    Há muito quem pense que “globalização” é o nome de uma doença letal só detetável quando já não tem remédio, amigo traiçoeiro a quem nos entregamos com a maior boa fé e que nos golpeia pelas costas rindo da nossa ingenuidade. Globalização pretende explicar tudo o que vai acontecendo no mundo mas oculta muito mais do que desvenda. A proximidade cada vez maior entre as pessoas, através dos meios de comunicação social e, sobretudo, da Internet, outorgou-nos a convicção de que vivíamos em estreita harmonia com o nosso próximo, de que o ser humano poderia satisfazer todos os seus legítimos anseios na convivência com os demais, batendo à porta do vizinho, em caso de necessidade, como era usual nas aldeias em que muitos de nós crescemos. Aliás, nem era preciso bater, bastava um “dá licença?” amigável e a resposta era, de antemão, conhecida: “entre quem é!”. Houvesse ou não gente lá dentro, as portas mantinham-se apenas encostadas. A boa vizinhança foi um valor que os portugueses se habituaram a cultivar. Infelizmente, a vida atual veio contrariar essa tendência tão positiva, não obstante estarmos todos, hoje, ao alcance de uma ligação telefónica ou de um mail.

    Não concordo com a afirmação de que “o mundo é uma aldeia global”. Mais apropriado seria que encontrassem outro termo para traduzir a realidade que vivemos mas reconheço que será difícil essa demanda. Chamar-lhe prisão global talvez fosse exagero porque, com todos os males de que o mundo padece, ainda não vivemos num clima concentracionário e seria, de todo, inconveniente; se optarmos por dar-lhe o nome de convento global, caímos no outro extremo, uma vez que, nesses lugares, é suposto cultivarem-se os bons sentimentos, a caridade com os irmãos – que somos todos –, trabalhar em prol dos que mais carecem, renunciar à acumulação desmedida de bens materiais, porém a marca religiosa não parece adequada num mundo cada vez mais descrente em relação à transcendência. Se pensarmos nas pequenas cidades, na primeira metade do século XX, em que a mobilidade era reduzida e quase todos se conheciam de tal maneira que as notícias corriam céleres de boca em boca, provavelmente acharíamos o mais adequado termo de comparação, no entanto padeceria de um vício de conformação

    A verdade é que a desigual distribuição dos recursos existentes e do acesso aos mercados, a começar pelo do trabalho, acentua-se, os benefícios decorrentes da chamada globalização exclui grande parte da população, mas cresce, em simultâneo, o anseio de justiça dos espoliados e oprimidos. Boaventura de Sousa Santos escreve no n.º 952 da revista “Visão” que «formulado de modos muito diversos, o desejo de uma sociedade mais democrática e mais justa é hoje um bem comum da humanidade». Com a queda do Muro de Berlim, o capitalismo tornou-se ainda mais agressivo, avassalador e crente na impunidade. Os detentores do poder económico e político parece terem “a faca e o queijo” na mão e esse facto leva-os a atitudes e a pronunciamentos desafiadores. Veja-se o caso das agências de notação financeira, mais conhecidas por agências de rating. Hoje, o mundo inteiro sabe que são poderosos instrumentos ao serviço do grande capital. «A falta de transparência e a divulgação de informação fraudulenta levou as agências de notação financeira a tribunal em alguns estados norte-americanos. Na Europa preparam-se iniciativas semelhantes» (“Courrier Internacional” – Maio de 2011). Criadas sob o pretexto de fornecerem aos investidores informações abalizadas acerca dos mercados de capitais, nada mais fizeram do que beneficiar os respetivos donos, escudando-se na sua aparente utilidade no são funcionamento das transações financeiras para favorecerem a especulação e o desenfreado ataque a países e empresas mais débeis. «Para compreendermos o papel da Moody’s, da Standard & Poors e da Ficht na crise atual, temos de distinguir dois momentos. O primeiro aconteceu, aproximadamente, a partir de 2001 com o boom imobiliário. Nessa altura, a tarefa das agências consistiu em, na sequência de pagamentos anteriores por serviços de consultoria, classificar em alta diversos produtos financeiros dos seus clientes. Muitos desses produtos eram hipotecas subprime e ativos tóxicos. Em conivência com os bancos as agências atribuíram-lhes a classificação máxima. Graças as essas operações, os executivos das agências de rating multiplicaram os seus lucros. Ao mesmo tempo provocaram uma bolha imobiliária que, ao rebentar, destruiu de uma penada o direito à habitação de milhares de famílias e condenou muitas outras ao desemprego» (idem – idem)

    Nos Estados Unidos, tal comportamento tem sido objeto de processos em diversos tribunais e de investigações do Senado e da Comissão de Valores Mobiliários. Em diversos estados, essas agências foram acusadas de terem agido sem rigor e sem transparência, de terem divulgado informação fraudulenta e favorecido clientes a quem, anteriormente, tinham prestado assessoria «num conflito de interesses. Foram pronunciadas algumas sentenças contra elas e estabelecidas novas regulamentações. Ainda assim, estas agências conseguiram utilizar o seu enorme poder económico, político e mediático para neutralizar os controlos mais rígidos. Na Europa, as sanções aplicadas às agências e à banca nem sequer chegaram a tanto. Pior do que isso: em Espanha, as entidades financeiras receberam enormes montantes de ajuda que lhes permitiram converter a sua dívida privada em dívida pública. E isso quase sem contrapartidas que as obriguem, por exemplo, a minorar o grave problema de habitação que contribuíram para criar» (idem – idem). Mais adiante, o autor do citado artigo, inserto no Jornal “Público”, de Madrid, acrescenta: «A dureza aplicada às dívidas grega, portuguesa e espanhola, por exemplo, contrasta com o laxismo com que são avaliadas outras, tão ou mais sujeitas a riscos, a começar pela volumosa dívida dos Estados Unidos. As avaliações das agências carecem de qualquer rigor. O critério técnico para medir a solvência de um país reside, quase exclusivamente, nas vantagens que este pode proporcionar aos especuladores ou na sua disposição para restringir os direitos sociais. Nada mais».

    Os leitores poderão avaliar a desfaçatez deste procedimento criminoso lendo a declaração de Warren Buffet, um dos donos da Moody’s: «Isto é uma luta de classes e a minha, a dos ricos, está a ganhar». Alguém ouviu dizer que este senhor tenha sido responsabilizado pela implícita admissão de responsabilidade em todos os horrores que se têm vivido nos países vítimas da atividade das ditas agências de rating? Aí temos a sinistra face da globalização.

    Tenhamos, porém, esperança! A reação pode vir a caminho. Como diz o Professor Boaventura de Sousa Santos, «reagir à europeia é (tem sido) acreditar nas instituições e agir sempre nos limites que elas impõem. Um bom cidadão é um cidadão bem comportado, e este é o que vive entre as comportas das instituições» (“Visão” n.º 952 – A pensar nas eleições). Logo a seguir, afirma que «dado o desigual desenvolvimento do mundo, não é de prever que os europeus venham a ser sujeitos, nos tempos mais próximos, às mesmas provações a que têm sido sujeitos os africanos, os latino-americanos ou os asiáticos. Mas tudo indica que possam vir a ser sujeitos às mesmas frustrações».

    Talvez ainda não seja o tempo, mas esse tempo não tardará, a julgar pelos movimentos, até ver pacíficos, que se têm registado em Espanha e também em Lisboa, no Rossio. «Os jovens acampados são sinais de um novo espaço público onde se discute o sequestro das democracias pelos interesses de minorias poderosas». (Idem – ibidem)

    Ficar-me-ia por aqui e pediria aos leitores que lessem o resto da referida crónica mas, certamente, muitos não teriam essa possibilidade, mesmo porque, ao lerem este trabalho, já estará nas bancas o número seguinte da “Visão”. Peço desculpa por alongar o meu escrito com a transcrição dos trechos mais significativos, mas creio que, assim, ficarão mais esclarecidos. «Para contextualizar a luta das acampadas e dos acampados, são oportunas duas observações. A primeira é que, ao contrário dos jovens (anarquistas e outros) das ruas de Londres, Paris e Moscovo no início do século XX, os acampados não lançam bombas nem atentam contra a vida dos dirigentes políticos. Manifestam-se pacificamente a favor de mais democracia. É um avanço histórico notável que só a miopia das ideologias e a estreiteza dos interesses não permite ver. Apesar de todas as armadilhas do liberalismo, a democracia entrou no imaginário das grandes maiorias como um ideal libertador, o ideal da democracia verdadeira ou real. É um ideal que, se levado a sério, constitui uma ameaça fatal para aqueles cujo dinheiro ou posição social lhes tem permitido manipular impunemente o jogo democrático. A segunda observação é que os momentos mais criativos da democracia raramente ocorreram nas salas dos parlamentos. Ocorreram nas ruas, onde os cidadãos revoltados forçaram as mudanças de regime ou a ampliação das agendas políticas. Entre muitas outras demandas, os acampados exigem a resistência às imposições da troika para que a vida dos cidadãos tenha prioridade sobre o lucro dos banqueiros e especuladores; a recusa ou a renegociação da dívida; um modelo de desenvolvimento social e ecologicamente justo; o fim da discriminação sexual e racial e da xenofobia contra os imigrantes; a não privatização de bens comuns da humanidade como a água, ou de bens públicos como os correios; a reforma do sistema político para o tornar mais participativo, mais transparente e imune à corrupção.”

    Estou em crer que os portugueses escolheram o que lhes pareceu “um mal menor”. Será possível que um governo liberal, que concordou com as imposições do FMI, da União Europeia e do Banco Central Europeu, dê resposta satisfatória às legítimas aspirações do povo que o elegeu? Talvez seja tão difícil como passar entre a parede e o beiral sem se deixar encharcar. Oxalá que eu esteja enganado, para bem de todos.

    Por: Nuno Afonso

     

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