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    Arquivo: Edição de 15-06-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    «Quem quer a bolota trepa!»

    Fez uma cara de espanto, ficou a olhar-me como se tivesse ouvido um disparate. A verdade é que foram palavras suas que eu quis lembrar-lhe naquele momento. Talvez não tivesse achado oportuna a minha intervenção ou tivesse, entretanto, mudado de parecer. Já trinta anos são passados, muita água correu por debaixo das pontes! Decorrido um breve momento, retomou a conversa com os meus amigos como se não me tivesse ouvido.

    – As minhas ambições, no plano profissional, foram, desde menina, ser professora e ser escritora. Consegui realizar as duas e sinto-me feliz por isso – explicava ela a um casal que eu acabara de lhe apresentar, também eles professores.

    – Foi a tal estrelinha que sempre a acompanhou? – indaguei à espera da sua confirmação que não aconteceu.

    Tínhamos concluído a licenciatura em Românicas. Eu, a minha mulher e a nossa filha de cinco anos tínhamo--nos instalado num pequeno apartamento no Campo Alegre, a poucas centenas de metros da Faculdade onde assistíramos às últimas lições. Ela era uma das nossas visitas mais assíduas. A conversa versava, naturalmente, sobre o tempo que vivêramos, esses cinco anos de grande esforço e de experiências inolvidáveis que incluíam o 25 de Abril de 1974 e o chamado PREC. O ano lectivo de 1973/74 fora interrompido pelo Movimento dos Capitães e, a partir desse dia, terminaram as actividades lectivas, as instalações universitárias tornaram-se campo de luta ideológica, de agitação infrene, de quase anarquia. Suspensas as segundas frequências e posta de lado qualquer hipótese de realizarmos exames, outra saída não restara ao Ministério, para avaliar os alunos, senão levar em conta as primeiras frequências a quem as tinha realizado e decretar “passagem administrativa” com a atribuição da nota 10 a quem não tivesse prestado qualquer tipo de provas.

    – Entrei na Faculdade após um exame ad-hoc, porque a minha instrução fora privada, com professores particulares e não possuía escolaridade oficialmente reconhecida. Estudara piano, Francês, Português, “prendas domésticas”, mas sempre li muito e interessei-me por muitas coisas. Casei com o homem que os meus pais escolheram para mim, fui esposa e mãe. Um dia, disse ao meu marido que desejava tirar um Curso superior, mas, durante bastante tempo, fingiu ter esquecido o assunto. Insisti e levei a minha ideia avante. Preparei-me para o tal exame e fui aprovada mas, para seguir Românicas, tinha que saber Latim. Contratei aulas particulares dessa disciplina e julguei-me capaz de frequentar as cadeiras obrigatórias do primeiro ano. Resultado: reprovação a Latim. Ao efectuar a matrícula para o segundo ano, renovei a inscrição em Latim I e julguei-me capaz de fazer também Latim II. Se o primeiro nível já seria difícil, com o segundo aumentaram os obstáculos, mas eu andava entusiasmada e ousei. Ainda bem, porque vieram o 25 de Abril e a passagem administrativa. Matei dois coelhos duma só cajadada e fiquei livre desse fardo. Noutras condições, o mais provável era a reprovação e o arrastar dessas cadeiras até ao fim do curso.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Todavia, a história dela tivera mais episódios felizes. Pouco depois, divorciou-se do marido que nunca tinha amado e, com os filhos já formados – ela entrara na Faculdade depois dos cinquenta! – e a colocação numa escola do Porto, sentia-se plenamente realizada. Conseguira ser opositora ao concurso para docentes pelo Grupo 8ºA, que os licenciados em Filologia Clássica não conseguiam preencher – ela que não fora aprovada em Latim! – e tornou-se-lhe mais fácil o estágio e a efectivação.

    – Adorava escrever e procurei transmitir aos meus alunos o encantamento que me possuía quando comunicava ao papel as minhas histórias. Gostava particularmente de escrever para os mais pequenos. Porém, as páginas que dactilografava eram metidas na gaveta, na secreta esperança de que surgisse uma oportunidade para as ver publicadas. E a oportunidade surgiu no dia em que o Mário Cláudio aceitou o meu convite para almoçar. No meio de uma boa conversa, revelei-lhe o meu segredo. Talvez só para me agradar, pediu que lhe mostrasse o que tinha escrito. Fui buscar um caderno onde relatava, numa prosa simples e rimada, as aventuras de uma fada que fazia tudo às avessas. Vi sinceridade nos seus olhos quando me disse que tinha gostado muito e logo se disponibilizou para me apresentar ao seu editor. Foi assim que o meu primeiro livro veio à luz. E teve muito sucesso junto dos miúdos. Sucedem-se os convites para ir a escolas do segundo ciclo e sinto-me uma avozinha querida no meio deles. Já nasceram oito irmãos e sinto-me com forças para continuar.

    Aos oitenta e seis anos, aquele ser, aparentemente frágil, tinha em andamento um projecto ambicioso acerca da cultura árabe no nosso país. Devorou livros, pesquisou em bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros, mas ainda não se sentia convenientemente preparada para pôr mãos à obra. Andava entusiasmadíssima. Também eu anseio pela publicação dessa obra que, tenho a certeza, será de enorme qualidade, e de relevante interesse, considerando o desenvolvimento que os nossos antepassados árabes imprimiram aos povos ibéricos.

    Quanto à tal “estrelinha”, estou convencido de que a Sofia mudou de opinião, porque deve ter compreendido que não basta o pretenso bafejo da sorte, é preciso que nos esforcemos por alcançar os nossos objectivos. O povo tem razão quando diz: “Quem quer a bolota, trepa!”

    Por: Nuno Afonso

     

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