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    Arquivo: Edição de 15-03-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Livros a quilo, sabedoria a rodos, sonhos cumpridos

    Há momentos em que temos a nítida percepção de que andámos a desperdiçar a nossa vida. Hesito em generalizar, talvez alguns não concordem e mesmo eu, que, desta maneira estou falando, talvez daqui a momentos pense de outro modo.

    É possível viver horas plenas em que tudo parece conjugar-se para nos dar satisfação, dir-se-ia que Deus nos concede a prova do que há-se ser o paraíso, mas lá vem depois uma forte contrariedade a arrefecer-nos o ânimo, a mostrar-nos a relatividade das coisas desta vida.

    Recentemente vivi uma dessas agradáveis experiências aquando da honrosa visita do senhor Professor Doutor José Hermano Saraiva ao Fórum Cultural de Ermesinde. Entrou no salão com o ligeiro atraso de dez minutos, cuja responsabilidade talvez não lhe possa ser atribuída, uma vez que dependia de outros para se deslocar. Primeira e muito importante lição: a pontualidade, que não é – está mais do que provado – uma das nossas virtudes.

    O jovem empunhava um livro quando me aproximei. Era meu conhecido há bastante tempo desde que frequento o hipermercado onde trabalha. Esse facto não lhe empece o gosto pela cultura e pelos livros. Sobre isso conversámos no tempo em que aguardávamos pela autorização de entrar no Fórum. Deu-me conta das suas preferências literárias, citou nomes de escritores e de obras que aprecia. O livro que trazia era de José Hermano Saraiva. Explicou-me:

    – Sabe? Certa vez, ao depositar o lixo lá de casa, encontrei, junto do contentor, um pacote com livros. E caí das nuvens repetidas vezes, porque, à medida que ia retirando volume a volume, apareciam obras como "Os Lusíadas", "Sermões" do Pe. António Vieira, "Folhas Caídas" de Almeida Garrett, " A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós, "O Espírito Lusitano ou o Saudosismo" e "Regresso ao Paraíso" de Teixeira de Pascoaes…e este do Professor José Hermano Saraiva – e estendia-me o livro, uma brochura em que o tempo imprimira as suas marcas. - reli-o quando soube que ele vinha cá. É muito interessante.

    De pronto associei a história que acabava de ouvir com outra dum sacerdote que, ao longo da vida, ia retirando dos seus minguados rendimentos uma parcela para aquisição de livros. Quando faleceu, os seus sobrinhos vieram pressurosos resgatar a fortuna que ele teria amealhado. Esqueceram-se de que o santo homem economizara apenas boas acções e outros créditos cuja rendibilidade transferira para instâncias supra-terrenas.

    No momento em que o convidado entrava na sala, estrondearam palmas e toda a assistência se levantou. Ouviram-se, igualmente, muitos assobios vindos dos escolares que ocupavam parte significativa do anfiteatro e tiveram precedência sobre os demais na ocupação dos lugares. Motivo para se ouvir a voz experiente do velho mestre: «quando cheguei, ouvi palmas e assobios. Isto quer dizer que a minha presença é discutível. Eu sou discutível e gosto de ser discutível!».

    O facto de o edifício onde nos encontrávamos ter sido outrora "uma fábrica de telha" e se ter transformado em "fábrica de cultura" deu azo às primeiras considerações do palestrante. Lembrou, a propósito, que, no século XVI, junto ao Palácio de Varatojo, existia um forno de cal que o fidalgo, seu proprietário, transformou numa capela. A filha desse nobre, D.ª Isabel de Castro Pereira, alegrou-se pelo facto, tendo escrito que: "a cal ali produzida servia para lavar (embelezar) as casas; a partir de então, a capela serviria para lavar (embelezar) as almas." Esta senhora seria a Beliza a quem o nosso épico dedicou vários sonetos. Beliza era só um anagrama de Izabel. Também ela teria aposto o seu nome a um soneto gravado nos azulejos do referido palácio. Entende o Professor que, pelo estilo e características deste poema, ele teria sido escrito pelo próprio Camões. Aludiu ao canto IX dos Lusíadas, cuja beleza a ninguém deixa indiferente, na descrição da Ilha dos Amores, com a sua luxuriante vegetação, a variedade da paisagem, os frutos maduros em que os pássaros vinham dar as suas bicadas. Estas bicadas referiam-se, claramente aos amores do próprio autor.

    ... E VÁ DE TROCAREM

    CARTAS DE AMOR...

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Acerca da sua actividade enquanto escritor, lembrou que, em 1942, tinha uma namorada com a qual mantinha assídua correspondência. Ambos desejavam muito casar, mas não havia dinheiro para cumprir o sonho. E vá de trocarem cartas de amor enquanto esse dia não chegava. Ela pedia-lhe que escrevesse muito e o futuro intelectual tentava fazer-lhe a vontade, alindava o seu discurso, romanceava, "pintava" as suas aguarelas literárias. Na povoação em que vivia, passava o comboio correio e ele, se entendia que "já tinha a sua conta", escrevia que há minutos lhe ouvira o silvo que, pelo ruído, devia estar muito perto, razão pela qual tinha que terminar a epístola para ir, correndo, levá-la à estação. Essas cartas, naturalmente podadas dos "queridos e dos beijinhos", foram enviadas a uma editora que assim publicou o seu primeiro livro. A "menina" responsável por tal feito encontrava-se ali sentada na primeira fila.

    Terminada a palestra, houve direito a perguntas. Um dos inscritos foi o moço a que acima aludi. Logo que tomou a palavra, ouviram-se risadas dos(as) escolares a ponto de quase o impedirem de falar. Aguentou com estoicismo a falta de compostura a que muitos dos nossos jovens já nos habituaram. Citou uma passagem do livro que tinha em mãos em que o autor defendia a prioridade em fomentar o ensino nos primeiros anos de escolaridade, base para a edificação de uma sociedade mais rica e equitativa. Perguntou ainda se o senhor Professor continuava a ter sonhos uma vez que há pouco confessara que "ia a caminho dos cem anos". José Hermano Saraiva reconheceu a paternidade do trecho lido e declarou que continuava a pensar dessa maneira e que tal posição fora a responsável pela sua saída do Ministério da Educação Nacional já no declinar do Estado Novo. Quanto aos sonhos, sim, mantinha o desejo íntimo de que os homens resolvessem os seus diferendos sem recorrerem à guerra.

    Enquanto dezenas de pessoas acorriam à mesa à procura dum autógrafo do senhor Professor, tive a grata surpresa de encontrar a minha querida amiga e colega de Faculdade Sofia Rodrigues, autora de onze livros dedicados ao público infanto-juvenil assinados com o pseudónimo Renata Gil, já antes convidada deste Fórum. Na presença de outros amigos declarou ter conseguido realizar os dois maiores sonhos da sua vida em termos profissionais e culturais: ser professora e ser escritora. Que bom se todos pudéssemos dizer o mesmo! Aos 83 anos, tem em mãos um projecto sobre a influência da presença árabe na cultura portuguesa. E continua a sonhar!

    Por: Nuno Afonso

     

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