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    Arquivo: Edição de 30-07-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    A janela

    Quando a viúva Augusta, nascida e criada em Jorjais, nas fraldas da serra da Estrela, e perto do Mondego, resolveu “ir na cantiga” do Jorge, voltando a casar, o povo ficou admirado! Viúva, com um filho a andar na mestra, com trinta e tal anos, e vida estabilizada, nunca pensou ir na treta do Jorge, bem mais novo, e de futuro incerto: nem lavrador ou cavador, apenas pastor de ovelhas, durante a transumância no Douro de invernos amenos.

    Se o destino marca a hora!, o casamento consumou--se. O marido montou taberna em Jorjais, comprou umas ovelhas, cavalo, junta de bois e, uns meses depois, uma linda cabra para aleitar o primeiro descendente. Conforme os negócios iam prosperando os filhos iam aparecendo. A Augusta bem barafustava, mas, entre o sorriso e o sério, o Jorge ia dizendo repetidamente:

    – Ainda hás-de ter outro! Ainda hás-de ter outro!

    Assim foi acontecendo: o quarto rebento teve o nome de Ivo. A mãe, quando passou a levá-lo pela mão, ouvia das pessoas menos conhecidas:

    – É seu netinho?, é ?!

    Fula, fula..., pregava aos ouvidos do marido: “Nunca devia ter casado! Só pensavas em ter filhos!?”

    Se os negócios da taberna prosperaram, os alfobres de cebolo (Abril) e das couves tronchas (Agosto), de fácil venda, e cultivados nos lameiros do Mondego, desactivados da produção de erva para as ovelhas, contribuíam para ter dinheiro depositado no banco de Gouveia. Centenas de milhares de pés de cebolo e pencas passaram a abastecer as hortas, desde Chaves a Viseu!

    O Ivo, tido como guicho, foi para as primeiras letras muito cedo. O professor Antunes gostava de o levar na ranchada que o acompanhava, em mais de três quilómetros, juntamente com as meninas e a esposa, professora D. Teresa, a caminho da Escola da sede da freguesia.

    Numa conversa, o professor perguntou aos alunos mais crescidos:

    – Vamos todos a par (juntos), como é possível, eu de pernas grandes, ser acompanhado por vós?!

    Como, mais de uma dúzia de rapazes não respondesse, o Ivo, quebrando o silêncio, afirmou:

    – Enquanto o Sr. professor dá um passo, nós damos mais!... O elogio fê-lo crescer!

    Durante o tempo que sobejara das aulas e caminhadas, principalmente nas férias, colaborava na pastorícia, por vezes só ou na companhia do primo Fernando António. Nos trabalhos agrícolas sentia-se alegre e útil. Conseguir fazer o mesmo que os mais crescidos dava ânimo. Mas, o grande gozo era andar aos ninhos. Descobri-los, observar a construção e o desenvolvimento dos pássaros enchiam a alma. Jamais os destruiu ou teve coragem de aprisionar os filhotes em gaiolas, mesmo os pintassilgos e os melros!

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Os anos de escola passaram. Por um triz não ficou distinto no exame da 4ª classe. O professor delegado Abel, durante as orais, resolveu entrar pelo programa de Ciências Naturais e, entre outros assuntos, perguntar as partes constituintes do fruto!? Como não tinha sido dada a matéria, o forte eram os problemas, ditados, História e Geografia, viu a distinção ir por água abaixo!...

    Após os resultados, foi abraçado pelos conhecidos e casal de professores. Comemorou o exame da 4ª classe com colegas no café da Vila, bebendo um pirolito de limão! Os pais, sempre atarefados, nem foram assistir às provas. “Sabiam quem tinham,” diziam cheios de prosa!...

    Na festa de Nossa Senhora das Neves, realizada a 15 de Agosto, durante a comemoração litúrgica, o pai, em acção de graças, pegou no pálio e rezou pelo futuro do filho mais novo, “o menino do mimo”. Este, com uns tostões a tilintar nos bolsos dos calções, pagou limonadas (garrafinhas cheias do jarro de água fresca, com açúcar e limão); ofereceu ramos de rebuçados floridos aos amigos; percorreu o caminho da procissão, cheio de fé, contemplando as janelas da rua principal de Jorjais, onde as colchas finas e coloridas ou colgaduras enfeitavam os parapeitos das sacadas e janelas. Na passagem da procissão, só se viam as colchas oscilando e as cabeças das pessoas! (ajoelhadas, dentro de casa, à passagem do Santíssimo).

    A decoração das janelas catalogava os residentes: ricos (poucos), remediados e cavadores de enxada. (Pobres de pedir não havia).

    Quando a procissão chegou à quinta dos professores, ao ver as janelas ricamente engalanadas, o Ivo pensou:

    – Tenho que fazer pela vida! e, quando for grande, poder ver os andores, anjinhos, música e foguetes a estralejar, debruçado duma janela com colgaduras de rico!...

    O pai do Ivo foi à quinta, a pedido do mestre, após o exame da sua 4ª classe. Levou de presente dois coelhos de orelhas caídas, únicos na povoação. Eram bonitos. Produziam o dobro da carne, e estavam sempre activos a baterem as patas, como cavaleiros as esporas!

    Da longa conversa saiu a sentença:

    – O Ivo vai para o Porto estudar.

    Um tio, a morar na rua do Bonjardim e de queijaria na rua da Madeira, prontificou--se a matriculá-lo no liceu Alexandre Herculano e hospedá-lo no Porto.

    Pelo alojamento o parente teve várias ofertas: cabritos, queijos frescos, hortaliças e frutas e outros mimos, entregues pelo recoveiro à porta da residência citadina, de tempos a tempos.

    Na primeira chegada do Ivo ao Porto saiu do comboio em Campanhã, para ir, com o tio que o esperava, meter os papéis ao liceu, ficou deslumbrado de ver tanta gente em movimento.

    Se a estação ferroviária o fez abrir a boca de espanto, quando chegou à igreja do Bonfim, e viu a escadaria, elevou os olhos à torre e ao céu, deu graças ao Criador! No entanto, como era um cismático, da palavra Bonfim pensou: “Será para bom fim, a vinda para o Porto?!; ou será o fim da vida (morte)”?

    Foi mesmo um bom fim. Na primeira noitada do S. João, já com as notas saídas e passagem de ano, pode assistir, duma janela da casa dos tios à multidão de romeiros, nos dois sentidos da rua, na noite mágica da Baixa da cidade.

    Numa janela, com os primos, colaborou em várias maroteiras:

    – Com uma mola de roupa, num extremo de um cordel, um deles, estava à entrada da porta e colocava a mola na aba do chapéu (protector das pancadinhas dos alhos porros). O chapéu, na vez de cair, era içado! Era mais que gozo, quando voltava, por magia, à cabeça do proprietário, a olhar o chão para não ser pisado!

    – Caninha felpuda, vinda por guita da janela, afagavam os rostos dos devotos de S. João. Quando procuravam a origem, era risota pegada!...

    – Uma pele de coelho, manipulada lá do alto, ao tocar os rostos dos passantes, fazia-os pular de susto!

    Nessa janela, o Ivo sentiu-se um Homem!

    Por: Gil Monteiro

     

     

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