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    Arquivo: Edição de 30-05-2006

    SECÇÃO: Educação


    A Página dos Jovens

    Pássaros voam

    Pássaros voam, mas sei que não é de encontro à minha janela. Porque eu não tenho janela e cresci a ver o mundo por uma porta fechada para a vida. Ali, sozinha com os fantasmas do meu passado. Passado que não vivi, mas que sei de cor, ele está tatuado na palma da minha mão. Não lhe fujo. Está no meu rosto, nas minhas lágrimas, em cada poro mínimo da minha pele. Pele sem cor, veias sem sangue, pulmões sem ar, ser sem vida. Interior. Exterior. Morte e cego de desejos e prazer. Com vontade de viver no mundo como os mortais que têm janela. Pianos em catarse, violinos que sabem chorar como gaivotas perdidas na montanha. Que não têm peixe para afundar o bico e matar para sobreviver. Lei menor de sobreviver sem cair e doer na cara. Como mãos que batem frias sem razão. Vozes que passam por baixo da porta e me trazem notícias do mundo. Más, feias e sem cor. Como eu. Sou o mundo. Ou então não sou e sou só uma pequena parte do que há de mal no mundo. A parte maior, a parte sem cor. Eu e aqueles que voam pela minha janela. Mas eu não tenho janela e eles não voam. Eu apenas acho que eles passam por cá, porque julgo ouvir o chilrear de um dia de Primavera sem vento. Onde tudo cresce livre e tudo é feliz. Sem ver lá de cima, o podre que não muda cá em baixo.

    Um sol que morde os olhos e que pica os lábios secos de contacto. Sede de toques e sentimentos em braços. Um vento que corta as pessoas em estilhaços, onde os maiores são os que doem por serem de passados que se queria apagar com uma borracha que passa num papel liso e não deixa nem marcas transparentes. Tudo se renova, como a água que cai das fontes, os braços que tornam a cair desamparados, os lábios que fecham sem dono, a dor que persiste em cada um de nós. Dor. Amor. Ligados entre fios invisíveis, esquecidos só por ver andar e ver esquecer. Quem sabe quem abraça não quer perder o olhar do que o olha de dentro. Sem falar, sem querer dizer algo. Só por gostar de ver chorar. Se fraco é não ter asas para fugir quando a porta se fecha e se esquece da chave para voltar a sair e respirar os ares do mundo. À nossa volta, risos que não são felizes. Risos que saem só porque se ensinou a sorrir e todos querem mostrar que o sabem fazer. Alto para os outros ver e ouvir. Para ser feliz por mim, que eu não sou capaz de cantar por aí fora. Não sou capaz de me assumir como carne que vai envelhecer e apodrecer diante dos olhos dos outros.

    O mundo é um verme gigante que nos engole em cada segundo, cada vez mais dentro da terra, cada vez os pés mais enterrados. Sem sentir que se vai sendo nada. Sem os outros notar que diante dos olhos eles morrem e os outros morrem. Em putrefacção de ideias e de dores. Na morte lenta dos dias que passam sem deixar cordas em que nos possamos agarrar só para esquecer que todos os dias são diferentes, mas que todos os dias são iguais. O mesmo lugar, as mesmas coisas, as mesmas ideias, a mesma falta de vontade para lutar e mudar o que nos mata, o mesmo deixar andar, o mesmo pensar que tudo está bem e que não se pode fazer nada, o mesmo olhar de desdém para quem é igual em nós na essência. Tão pouco vemos, mas tanto achamos ver e saber. Quero só ir para o outro lado e por hoje, esquecer que existo. Quero só ser alguém, deitar-me num dia e acordar noutro muito distante daqui e saber que vou começar a viver. Ali, naquela manhã com sol e com janela. Como se sobre mim tivessem passado mil e duas maneiras de ser…

    Por: Daniela Ramalho

     

     

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