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    Arquivo: Edição de 15-02-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Tempo de valentes

    Sempre que o astro--rei sorria prazenteiro, liberto da sua guarda de nuvens, em qualquer estação do ano, o tio Manuel Barrocas ganhava ânimo para sair de casa. Sentava-se no banco, ao lado da porta, que dava para o caminho, envolto num capote mais gasto e descolorido do que ele, e ali se deixava ficar, respondendo aos cumprimentos dos que passavam ou trocando lérias com alguém mais conversador. Já fizera noventa e quatro anos, mas guardava uma lucidez invejável, capaz de discorrer sobre acontecimentos de muitos anos atrás e de manter ligação à actualidade. É verdade que as pernas fraquejavam, fora perdendo a visão nos últimos tempos e tinha alguma dificuldade em sintetizar os sons do mundo à sua volta.

    – Só enxergo vultos e ouço mal, mas conheço-os a todos por o falar. Olhe, este rapazito, que passou inda agora, é neto do Carolino da Albana. A filha do Carolino casou com um moço de Castrelos e vivem ali na casa que foi do Zoão. Ele está na Suíça e os dois filhos andam nos estudos em Bragança.

    – Vossemecê tem boa memória ! Como é que guarda todas essas lembranças? – observei com sincera admiração.

    Oh! – e encolheu os ombros. – Não sei, olhe, eles vão falando, contam coisas da sua vida e também das vidas dos outros. Eu ouço e penso no que dizem, não me esqueço. Esta é uma aldeia onde inda há muita gente mas poucos trabalham na lavoura. Uns saem logo de manhã p'rás obras em Bragança, nas camionetas dos STUB e voltam à noite; os garotos também vão p'rós 'studos; os que ficam vão enredando por aí... Já não há gente como no meu tempo...

    – As condições são outras, bem melhores do que nesse tempo.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    – Pode ser, pode, mas as pessoas também mudaram. Não há homens valentes como havia dantes, os rapazes novos são uns fraitelas(1), "não podem com um gato p'lo rabo". O meu pai falava muitas vezes no Zé Vilaro, tio do Baptista, da Inácia, do Nocêncio e do Pressas que o senhor ainda conheceu bem. Contava que, certa ocasião, justou um carro de lenha com um homem de Bragança que vivia ali p'rós lados do Toural antigo. Carregou a lenha, prendeu-a fortemente com cordas e tocou as vacas em direcção à cidade. O carro "cantava" por esse termo fora, sinal de que ia muito pesado. Os animais puxavam bastante, mas os trilhos eram maus, havia que seguir com atenção os movimentos da cria(2) não fosse a carga adernar. Sendo preciso, lá ia o Vilaro botar a mão do lado mais baixo e picar a Cereja ou a Marela que se encolhiam e punham em risco a empreitada. Ao cabo de algumas horas encontrava-se às portas de Bragança. Foi então que lhe saiu ao caminho um polícia a impedi-lo de avançar: "Ó amigo – avisou o homem de farda – o senhor não pode ir mais adiante, é proibido entrar na cidade com bois, vacas, machos, mulas, burros...".

    "Mas eu fiquei de entregar esta lenha ao senhor Joaquim Matias, conhece-o? Fiquei de lha entregar hoje e eu sou homem de palavra" – justificou o tio Vilaro. "Pois as ordens que nós temos são estas. Ninguém nos explicou a razão, mas, até ver, nenhuma besta pode passar" – declarou o polícia a pôr fim à conversa. Pareceu ao tio Vilaro um tanto estranho o tom empregado para falar de "animais", de "burros", de "bestas", mas preferiu fazer-se desentendido que o homem era autoridade e com autoridade não se brinca.

    – Situação complicada! – disse eu, aproveitando a pausa do tio Barrocas e a pensar que a história mais parecia charada ou mito para valorizar a valentia de alguém. – Não estou a ver como podia resolver o problema.

    – Mas resolveu, sabe? Pode parecer mentira, mas o meu pai não dizia mentiras e as pessoas dessa época contavam da mesma maneira o acontecido. Quer saber como se desenrascou? Pois ouça: desviou o carro da estrada para um campo ao lado, desapertou as cordas e estendeu-as no chão. Subiu ao carro e descarregou-o até não ficar um guiço(3) sequer em cima da aixeda. Pôs tudo sobre as cordas, trepou acima do molho e apertou-o o melhor possível. Depois, não sei como, levantou-o e levou-o às costas até à porta do freguês. O senhor imagina o espectáculo para toda a gente que via passar aquele fardo enorme como se andasse sozinho, uma vez que o tio Vilaro ia tão dobrado que mal se enxergava? Quando, por fim, o botou ao chão, estava cercado por um magote de homens e de mulheres que julgavam assistir a um milagre. E ao verem sair debaixo do enorme feixe de lenha aquele homenzarrão, julgaram-no ainda mais alto e mais forte do que de facto era.

    – Na sua opinião, qual foi o verdadeiro motivo para fazer o que fez ? – perguntei.

    – Ele mesmo respondeu quando disse que era um homem de palavra. Também não deve ter ficado contente com a atitude do polícia. Já não era a primeira vez que ele e outros lavradores aqui da nossa aldeia levavam lenha a famílias da cidade para ganharem uns cobres, e não entendia porque antes podiam e agora assim, sem mais, o proibiam a ele de o fazer. Acho que foi com o nervoso, sabe? Quando um gajo se zanga, como não se pode vingar nos outros, às vezes vinga-se nele próprio, faz coisas que até parece impossível. E tinha que levar a lenha toda, senão, enquanto levava um feixe, podiam-lhe roubar da que ficasse.

    – Tem razão, tio Manuel, gostava de ter visto o espectáculo.

    E afigura-se-me aquele homem com a envergadura de um guerreiro medievo, chapelão de aba larga enterrado até às orelhas sobre uma cabeleira mal-educada, a roupa de pardo crivada de folhatos(4), uns sapatos grosseiros de couro cru feitos pelo tio Vitorino, um ar humilde de frade mendicante e a pudicícia de uma donzela em busca de um destino para esconder as grossas mãos de cavador frente ao povoléu embasbacado e incrédulo.

    1 Fraitelas – pessoa(s) fraca(s) e sem genica.

    2 Cria – animal de tiro.

    3 Guiço – lenha fina, pedaços finos de lenha.

    4 Folhatos – folhas secas de carvalho ou de outras espécies.

    Por: Nuno Afonso

     

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