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    Arquivo: Edição de 30-11-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Sempre Governo vs. Justiça

    A Constituição da República Portuguesa põe em idêntico plano o Governo e os Tribunais, quando os define como órgãos de soberania, acrescentando que devem observar a separação e a interdependência estabelecida, requisito que implicará que uma e outra das Instituições reciprocamente respeitem a respectiva independência, sem o que, dificilmente, o desiderato de normal funcionamento das instituições será almejado.

    Não é recente as dificuldades do Poder Executivo (Governo) em aceitar pacificamente a independência do seu “par” institucional Poder Judicial (Tribunais), sendo frequentes os indesejáveis episódios de confrontação em ambientes em que algum dos seus membros (em exercício ou depois dele), ou apoiantes, são incomodados pela Justiça, principalmente quando esta se revela como último reduto em que todos os cidadãos são tratados em pé de igualdade, independentemente das suas opções partidárias ou do seu estatuto socio-económico.

    Que as relações entre o Governo e a Justiça de há vários anos se alimentam de uma paz podre, certamente que não será segredo para a maioria dos portugueses, mas a atitude do actual governo, privilegiando os titulares de um órgão de soberania, seu parceiro na organização das instituições que compõem o Estado, para propalar a sua “populucha” marca de governação, não poderia ter outras consequências que não fosse uma firme tomada de posição dos juízes, a menos que estes se acomodassem a uma incompreensível situação de subalternização relativamente ao poder Executivo, o que, a acontecer, seria uma tragédia para a democracia e um irreparável dano para a segurança e liberdade dos cidadãos. Desejável será que precisemos de largos anos (ou que nunca lá cheguemos) para nos identificarmos com os países africanos ou latino-americanos, em matéria de independência dos tribunais.

    AS PREPOTÊNCIAS DOS EXECUTIVOS

    Nos regimes ditatoriais e em democracias em que o poder executivo é exercido com o apoio de uma maioria estável nas respectivas assembleias, sejam elas assembleia da república, assembleias regionais ou municipais, é corrente a prática dos Executivos sujeitarem os cidadãos às suas prepotências, muitas vezes com total desprezo pelos direitos humanos consagrados em textos universais, nas próprias Constituições ou na legislação ordinária doméstica, restando aos ofendidos o recurso aos tribunais para verem as suas querelas apreciadas e, quando seja o caso, reconhecidos os seus direitos, decorrendo daqui que a Justiça deva ser apoiada pelos cidadãos quando precise de reafirmar o seu estatuto de independência face ao poder político, ou reclame os recursos humanos e materiais para que a resposta aos pleitos seja dada em tempo minimamente aceitável, exigindo-se aos seus titulares que exerçam a sua nobre função com abnegação, competência, bom senso e diligência, para que o resultado do seu trabalho seja útil e reconhecido pela sociedade e pelos cidadãos.

    Neste enquadramento, as sonoras declarações do governo ao mexer no estatuto dos magistrados, traduzidas em eliminação de privilégios que só eles teriam, tê--lo-ão sido extemporâneas, e eventualmente injustas, a avaliar pelo desenvolvimento que o episódio tem registado, sendo o mais recente a pública compreensão do Presidente da República, podendo o contraste ser encontrado com o ziguezaguear de decisões governamentais quando idênticas medidas quiseram que afectassem os agentes políticos. Estes, mais próximos e mais identificados com os detentores do poder legislativo, lá vão levando a água ao seu moinho, dando provas como são céleres em retirar direitos adquiridos aos outros e quão diligentes são para que os seus se mantenham intocáveis.

    Compreende-se, assim, as desassombradas declarações do presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferidas na abertura do VII Congresso dos Juízes Portugueses, as quais logo mereceram a reacção do deputado Vitalino Canas, que as considerou susceptíveis de colocar em crise o relacionamento entre órgãos de soberania. E quanto a nós, talvez tenha razão, a avaliar pelo impacto negativo que as declarações do governo tiveram no seio dos juízes que os levou a aproveitarem a mediatização do seu Congresso e a presença do Supremo Magistrado da Nação, para dizerem de sua justiça, com voz forte, reiterada e sem meias tintas.

    Claro que as coisas entre estes órgãos de soberania não vão bem (vão mesmo de mal a pior), a ponto do primeiro-ministro sentir a necessidade de lembrar que quem governa é o governo e que os juízes devem respeitar as decisões governamentais, facto que por si só suscita a dúvida quanto à bondade da governação ser suficiente para levar os destinatários das suas medidas a aceitá-las pacificamente. Melhor seria, para o fortalecimento da democracia e prestígio das instituições, que o governo evitasse hostilizar os titulares dos outros órgãos de soberania, optando por procurar no recato dos gabinetes sensibilizar os magistrados para as reformas que entenda serem necessárias para uma resposta mais célere da justiça e eventual afectação dos recursos mais racional, interiorizando que a discussão deve ser precedida de alterações que coloque os servidores deste importante órgão de soberania ao nível dos demais, começando por se interrogar como seria o funcionamento dos ministérios e da assembleia da república se as mordomias e os recursos de logística que lhes estão afectos (secretários, secretárias, assessores, chefes de gabinete, motoristas, viaturas, consultores para tudo e para nada, etc.) fossem reduzidos para níveis dos concedidos pelo governo aos operadores da Justiça.

    Um bom ensaio para o ajustamento dos recursos consumidos pelo Governo e pela Justiça, seria o Governo continuar a definir o número de operadores da justiça e o respectivo orçamento, e o Conselho Superior da Magistratura a fazer o mesmo relativamente ao Governo. Ninguém terá dúvidas de que o Orçamento do Estado sofreria uma retumbante quebra na rubrica das despesas de funcionamento; a burocracia conheceria um rude golpe com reflexos positivos na rapidez das decisões. Enfim, todos ficaríamos a ganhar, salvo se os interessados adoptassem indesejáveis práticas denunciadas em empresas públicas.

    O VII Congresso dos Juízes terminou ontem. Os discursos finais não esfriaram os ânimos. O distanciamento entre governo e operadores da justiça não se encurtou, pelo contrário, sendo disso prova a resposta dada pelos juízes e magistrados do Ministério Público ao apelo do primeiro-ministro, tipificada no género: o Governo quer ser respeitado? Respeite os operadores da Justiça. Resta-nos, por isso, confiar nos méritos da magistratura de influência do Presidente da República, esperando que a sua paciência e poder de persuasão leve os desavindos a entenderem-se, a bem de Portugal, dos portugueses, e da recuperação de algum prestígio para os respectivos órgãos de soberania. A continuarmos a assistir à arrogância do governo, com resposta à letra de representantes das magistraturas, devemos lembrar-nos de que quem semeia ventos não deve esperar por bonança.

    Por: A. Alvaro de Sousa

     

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