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    Arquivo: Edição de 15-06-2005

    SECÇÃO: Cultura


    Ágora evocou Camões

    Véspera do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Na Biblioteca da Vila Beatriz, a Oficina das Letras do Ágora dedicou o último dos seus já regulares Encontros de Poesia, como não poderia deixar de ser, ao imortal poeta. A sala, pequenina, estava, contudo, repleta. As portas laterais ficaram abertas e, algum do público, aproveitando o tépido da noite e o ameno jardim, ficaram a ouvir do lado de fora.

    Carlos Faria deu início à sessão, fazendo uma breve apresentação biográfica do grande escritor e dizendo, de seguida os primeiros poemas.

    Foto Rui Laiginha
    Foto Rui Laiginha
    Com ele estiveram depois Amílcar Mendes, Cláudia Almeida, Álvaro Mendonça, António Sousa e António Pinheiro.

    “Mudam-se o Tempos, Mudam-se as Vontades”, “Perdigão Perdeu a Pena”, “Amor É um Fogo que Arde sem se Ver”, “Amor Loco, Amor Loco”, “Sete Anos de Pastor Jacob Servia”, “Foge-me Pouco a Pouco a Curta Vida”, “Endechas a Bárbara Cativa” e muitos outros poemas de Camões deliciaram a assistência presente na Vila Beatriz.

    Do último poema, António Sousa chamou a atenção para a sextina, forma poética fixa de muito difícil tratamento, criada pelo poeta provençal Arnaut Daniel, mas que outros também entendem originada na oitava de Ariosto, introduzida em Portugal por Sá de Miranda.

    Foi uma forma poética que teve repercussão na poesia popular e que consiste numa composição de seis estrofes de seis versos com uma forma muito engenhosa, em que as palavras finais de todos os versos se repetem, apenas com a ordem trocada.

    Também de “Endechas a Bárbara Cativa” se falou um pouco, pelo arrojo do elogio escandaloso que Camões fez à beleza morena de uma escrava, por contraste com o ideal de beleza feminina vigente na época - a mulher de cabelos louros e olhos azuis.

    O Camões escamoteado pelo poder, e ignorado na sua dimensão mais profunda, foi também objecto de atenção por parte de António Pinheiro, que leu um texto desassombrado de (e à altura de) Jorge de Sena.

    De resto, outros poetas, também ditos na sessão, como que revisitaram Camões (Jorge Sousa Braga - “Portugal”, dito por Amílcar Mendes com a sua voz privilegiada, Clarice Barata Sanches, André Monteiro, Manuel Alegre, Alexandre O’Neil, Mário Henrique Leiria - “Sagres”, um anónimo - “Pessoa de Cor”, que motivou alguém a dizer, de imediato, António Gedeão e a sua “Lágrima de Preta” e Florbela Espanca.

    Foto Rui Laiginha
    Foto Rui Laiginha
    Em momentos de poesia à solta, abertos a outros diseurs de ocasião, além dos da Oficina das Letras e seus convidados, poetas locais – Luís Panda e Guilherme Gomes de Andrade (Garrincha) declamaram também os seus versos, em honra da vida e de Camões.

    Um interlúdio musical, já habitual nas sessões do Ágora, fez ouvir os sons de Carlos Paredes, pelos dedos, mais uma vez, de Rocha Ferreira (guitarra portuguesa) e Manuel Valdrez (guitarra clássica). “Verdes Anos”, “O Fantoche” e outros temas ganharam vida e tomaram logo ali conta da Biblioteca. E depois, uma curiosidade, ou um contributo à compreensão do grande compositor contemporâneo e mestre inigualável da guitarra portuguesa. Indo à linhagem familiar de Paredes, os músicos resgataram um tema do seu avô, Gonçalo Paredes.

    Para o final, estava guardada uma surpresa. De novo os dois intérpretes interpretaram “Verdes Anos”, mas agora numa versão menos conhecida, a original, ainda não estilizada como a que ficou consagrada com o filme.

    Luís de Camões, pode dizer-se, esteve em boa companhia, há dias, numa noite quente na Biblioteca da Vila Beatriz.

    SEXTINA

    (de Luís de Camões)

    Foge-me pouco a pouco, a curta vida,

    E por caso é verdade que inda vivo;

    Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos;

    Choro pelo passado; e, enquanto falo,

    Se me passam os dias passo a passo,

    Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

    Que maneira tão áspera de pena!

    Que nunca ua hora viu tão longa vida

    Em que possa do mal mover-se um passo.

    Que mais me monta ser morto que vivo?

    Pera que choro, enfim? pera que falo,

    Se lograr-me não pude de meus olhos?

    Ó fermosos, gentis e claros olhos,

    Cuja ausência me move a tanta pena,

    Quanta se não compreende enquanto falo!

    Se, no fim de tão longa e curta vida,

    De vós me inda inflamasse o raio vivo,

    Por bem teria tudo quanto passo.

    Mas bem sei que primeiro o extremo passo

    Me há-de vir a cerrar os tristes olhos,

    Que Amor me mostre aqueles por que vivo.

    Testemunhas serão a tinta e pena,

    Que escreverão de tão molesta vida

    O menos que passei, e o mais que falo.

    Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!

    Que se de um pensamento noutro passo,

    Vejo tão triste género de vida

    Que, se lhe não valerem tanto os olhos,

    Não posso imaginar qual seja a pena

    Que traslade esta pena com que vivo.

    Na alma tenho confino um fogo vivo,

    Que, se não respirasse no que falo,

    Estaria já feita cinza a pena;

    Mas, sobre a maior dor que sofro e passo

    Me temperam as lágrimas dos olhos,

    Com que, fugindo, não se acaba a vida.

    Morrendo estou na vida, e em morte vivo;

    Vejo sem olhos e sem língua falo;

    E juntamente passo glória e pena.

    Por: LC

     

     

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