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    Arquivo: Edição de 15-03-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Carlinhos da Sé

    Se houve homens e mulheres que determinaram e, em muitos casos, alteraram o curso da História, não é menos verdade que jamais veio ao mundo criatura que não tenha contribuído, de um ou de outro modo, para a vida colectiva, tal como a gota de água que engrossa a corrente e faz desbordar o rio, assim fertilizando o solo das margens. Quem quer que tenha suscitado uma lágrima de compaixão, um sorriso cúmplice, uma referência grata, um gesto de ternura ou de simples cordialidade deixou um traço indelével para todo o sempre.

    Quantos milhões de seres viveram confinados a um reduzido espaço temporal, físico e psíquico, privados de convívio com a quase totalidade dos seus semelhantes, muitos nunca puderam exprimir os seus mais íntimos sentimentos, não pronunciaram uma frase nem soltaram um grito, alguns julgaram que o mundo não ia além do próprio horizonte visual e partiram sem um questionamento, tão naturalmente como aceitaram o calor e o frio, a fome e a saciedade, a tristeza ou a alegria que experimentaram na sucessão dos seus dias. Deles ficou a recordação, ficaram as palavras e as emoções que influenciaram parentes, amigos ou circunstanciais conhecidos e deles passou a outros num comentário ou numa qualquer referência, ninguém sabe até quando, certamente muito para além da própria existência.

    Bragança, na segunda metade de novecentos, não teria sido a mesma sem o Carlinhos da Sé. Da Caleja, sítio pobre e mal-falado onde veio ao mundo, descera à praça da Sé daí lhe vindo a designação. Quase poderíamos dizer que por lá dera os primeiros passos e dela fizera cenário da sua participação social. A qualquer hora do dia, quem ali passava forçoso era encontrá-lo, quer circulando, quer entretido com algo aparentemente tão simples como um espelho, um canivete ou os botões da sua jaqueta.

    O FADO

    Ilustração Rui Laiginha
    Ilustração Rui Laiginha
    Magro e “meão na altura” como de si dizia o grande Bocage, cabeça torcida para a direita, lembro-me de o ver com um caqueiro de aba redonda e larga, misto de sombrero mexicano e chapéu braguês, outras vezes de boné enterrado até às orelhas. «Um pobre de Cristo» – diziam uns quantos num misto de comiseração e de soberba; « mais um que tem o miolo mole» – desdenhavam outros, pretendendo-se engraçados. Como quer que fosse, muitos dos que com ele cruzavam dirigiam-lhe piropos, puxavam-lhe pela língua à espera de uma alarvada, de uma resposta torta na sua voz roufenha e enrolada ou faziam-lhe um simples cumprimento ao qual respondia se estivesse bem disposto.

    Dele se contavam muitas histórias alicerçadas na expressão espontânea e sem peias e na peculiar forma de dizer. Em certa ocasião acompanhou a avó ao médico. O clínico auscultou-a e, nada mais detectando além de uma forte constipação, recomendou-lhe que se metesse na cama e prescreveu-lhe os supositórios da praxe para baixar a temperatura. À falta de alguém mais indicado, teria que ser o Carlinhos a aplicá-los.

    O doutor, que já o conhecia, hesitou em confiar-lhe a tarefa mas sempre lhe foi explicando como deveria proceder.

    Mal chegaram a casa, o rapaz perguntou:

    – Atão é por a frente ou por trás?.

    – É por trás –, respondeu a avó.

    – Oh! Oh! Oh! Isso é que vai ser um fado!... – casquinou.

    Doutra vez, um polícia de giro surpreendeu-o a beber de uma garrafa que trazia no bolso do casaco, ali mesmo em frente à catedral. Beber na via pública e junto a um lugar sagrado pareceu-lhe desaforo ou provocação. Interpelou-o e, ao aproximar-se, detectou um cheiro forte a aguardente. Quis levá-lo à esquadra. O Carlinhos é que não esteve pelos ajustes:

    – Bô! Bô! Atão já um home num pode desinfectar uma ferida?... – e pôs-se a coçar no braço esquerdo com toda a força.

    O agente desistiu da ideia mas exigiu que fosse beber para outro lado

    Por: Nuno Afonso

     

     

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