Do lado de fora
Lembro-me que esta personagem apareceu, de súbito, a dormir debaixo das arcadas do meu prédio. É provável que fosse outono.
A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Deitava-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo.
Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos, mas até podia ter menos.
Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada, literalmente.
Nas diversas tentativas de contacto, tinha sempre a mesma reação: virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, mas sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Das várias vizinhas que lhe levavam comida, a mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico, já com víveres separados. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.
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Ilustração: @RODOLFO.BISPO.77 |
Certo dia, apontou-me umas palavras a lápis, no mármore, acerca de uma chave achada, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais estável.
A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá porquê. Em muitas noites, de vários invernos, chegando eu tarde do trabalho, vi-o contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela. Começámos a acreditar que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.
Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno. Com a sua carga de sacos às costas, foi contornando os limites da cidade, parando, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, numa rua interior do Olival, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se.
Junto a uma antiga fonte, com vista sobre o vale, instalou-se num banco de pedra e começou a comer o que devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera.
Duas horas depois, feita a sesta e reposta a carga, subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto por umas árvores, e ficou-se a espreitar, longamente, algo lá em baixo, junto ao riacho. Eu não via mais do que uma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal, que alguns tinham tomado à ribeira, para fazer horta.
Ao voltar os binóculos, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção:
(...)
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Por:
Joaquim Bispo
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