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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 14-03-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Um homem às direitas

    A respeitabilidade não lhe advinha só da postura austera mas, simultaneamente, do uso da batina clerical, da sua origem familiar e do grau académico que obtivera. Pertencia à família Souto Vaz, muito conhecida em toda aquela região onde, mais de século e meio volvido, se fixara o primeiro varão portador desse nome. A residência familiar era um casarão perto da Igreja, rodeado por outras construções inicialmente destinadas a depósitos de apetrechos agrícolas, de instrumentos para tratar a lã, o linho e a seda, de mobiliário doméstico, de produtos de sequeiro, e dependências várias que tanto podiam servir para hospedar amigos de passagem como garantir um teto a filhos que, um dia, viessem a constituir uma nova família.

    Havia tradição de padres na família: sem nos distanciarmos demasiado, na geração anterior à sua, havia um e, nesta, ele e um seu irmão, sobrinhos daquele, caso bastante raro nessa época. Terminado o Curso Teológico e recebidas Ordens Maiores, o nosso homem fora escolhido para continuar a sua formação religiosa e cultural em Roma e, na Cidade Eterna, haveria de se licenciar em Direito Canónico pela Pontifícia Universidade Gregoriana. De lá regressara, pois, doutor, palavra ainda pouco declinada em nossas terras salvo para um que outro médico, dois ou três advogados e poucos professores do Liceu. Quase diríamos que o título passou a ser mais importante do que o próprio nome em relação ao Doutor Vaz. Senhor Doutor para estranhos e conterrâneos, apenas Doutor Frederico para os primos direitos – ninguém ousaria dirigir-se-lhe por Fred, Riquinho ou vocativo semelhante como acontecia a outros homens com o mesmo nome – e tio Doutor para os filhos dos primos, nenhum escapava à regra, o que levou o senhor Pe. Anselmo, bastante mais novo mas seu colega enquanto professor do Seminário Maior, conhecido, entre outros motivos, pelo bom humor, a atribuir-lhe o que se dizia da pescada que “antes de ser já o era”, com o sublinhado de uma vibrante gargalhada, aludindo àquele ar que não poderíamos dizer autoritário ou enfatuado mas naturalmente distinto desde criança.

    Desempenhou cargos importantes na Cúria Diocesana incluindo a de juiz, «que lhe assentava como uma luva», e de professor de Filosofia e de Matemática no Seminário, matérias às quais correspondia o seu aspeto de cientista, enredado em silogismos latinizados e na lógica escolástica, pouco menos que impenetráveis para cérebros em processo de formatação.

    E se, nessas funções em ambiente intelectualizado mas servido pela regra inflexível do magister dixit, ainda colhia algum êxito, pelo menos pela ausência total de contraditório, tratando-se de trabalho pastoral como pároco de aldeia nem sempre as coisas funcionavam dessa maneira. Talvez pareça estranha e até paradoxal tal afirmação uma vez que o povo, na sua maioria, era iletrado e só umas dezenas de pessoas teriam frequentado a escola primária dois ou três anos, porém, num tempo em que a Missa era celebrada em latim, a homilia em vernáculo era apreciada, positiva ou negativamente, pelos paroquianos nas conversas das tardes domingueiras ou nos raros momentos de ócio que o insano trabalho agrícola permitia. Mas, se o conteúdo não era discutido, a acessibilidade da linguagem, a fluência do discurso, as qualidades persuasivas do orador eram sempre muito apreciadas e em muito contribuíam para a adesão à mensagem transmitida. O senhor Pe. Vaz, não sendo um grande orador, exprimia-se com correção, cuidando que as suas palavras fossem simples e diretas. Quanto a outras ações do seu múnus, não mereciam reparo nem andava nas bocas do mundo por questão de “rabos de saia” que não dava azo a que se aventassem. Onde as divergências mais se faziam notar era nas decisões em que certos representantes da Igreja manifestavam um conservadorismo deslocado no tempo e que o senhor Pe. Vaz assumia convicta e teimosamente.

    Decorriam os anos 50 da passada centúria quando essas divergências se manifestaram com um vigor inabitual. A festa do Santo Amaro que se realizava, anualmente, no dia 15 de janeiro era, porventura, a mais concorrida das redondezas. Além dos devotos do santo, acorriam à ermida, situada num lugar bucólico a cerca de um quilómetro da aldeia, jovens das povoações em redor cujo principal objetivo era participar no baile tradicionalmente efetuado após a celebração religiosa. Ora, nas vésperas da romaria, o senhor Pe. Vaz advertiu que não permitiria a realização de manifestações desse género na proximidade da capela, mas ninguém parece ter levado muito a sério tal proibição porque era tradicional, porque o Santo Amaro estava no calendário de todos os jovens das terras vizinhas e não havia tempo de os avisar da interdição, porque tinham convidado pessoas que tocavam instrumentos como o acordeão, o bandolim e a viola para animarem a festa, porque eles esperavam com ansiedade esse evento para se relacionarem com outros jovens cuja única ocasião de conviver era aquela romaria que tinha lugar em pleno inverno. Na hora da homilia, o senhor Pe. Vaz repetiu o aviso de que não admitiria baile num lugar em que se homenageava um santo, que o sagrado e o profano tinham espaços próprios e separados. Uma vez pronunciado o Ite, Missa est, a rapaziada juntou-se para discutir a questão e nomearam o Abel para demover o padre da intenção demonstrada. Bem tentou o rapaz argumentar que não havia outro espaço senão aquele, que até os mais velhos se lembravam bem dos bailes realizados no seu tempo, que logo acima era carrascal e esteval onde não era possível dançar. Como informa a “História da Vida Privada em Portugal (Idade Média)” sob a direção de José Mattoso, «os dias das festas dos santos, precedidos pelas suas vigílias, eram momentos altos do extravasar das emoções humanas, imbricando-se num todo indissociável dos sentimentos religiosos e lúdicos. Honrar o santo escolhido era estar junto dele no seu santuário. /…/Na romaria convivia o sagrado com o folclórico, a regra e a mesura do canto, da dança, da música e da merenda desbordavam não poucas vezes em excessos…/…/O encanto dessas romarias conhece toda a expressão poética nas cantigas de amigo em que as donzelas, mais preocupadas com o amado do que com a devoção, procuravam nesses lugares dar curso aos seus sentimentos amorosos…». O exemplo mais conhecido dessas cantigas de romaria será, talvez a paralelística n.º 336 do Cancioneiro da Vaticana do trovador Pero Viviães, que assim se expressa:

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    Poys nossas madres uam a Sam Simon

    De Val de Prados candeas queymar,

    Nós, as meninhas, punhemos d’andar

    Com nossas madres, e elas enton

    Queymen candeas por nós e por ssy,

    E nós, meninhas, baylaremos hy.

    ………………………………………..

    Os trovadores interpretavam o sentir das meninhas (meninas) que, não postergando o sentimento religioso preocupação, sobretudo, das suas madres (mães), que iam acender candeas (velas), exprimiam preocupações mais terrenas. Acompanham-nas no ato religioso, contudo outro era o seu principal objetivo. No seguimento da cantiga, falam dos amigos que “todos lá iran por nos veer”… (todos lá irão para nos ver). Todavia, se nos séculos XII, XIII e XIV, as manifestações de regozijo popular tinham lugar, frequentemente, dentro das igrejas, no decorrer do tempo, passaram a realizar-se no exterior, embora próximo delas, dentro ou fora do adro que as cercava. Neste caso, a única concessão do senhor Pe. Vaz foi que as diversões tivessem lugar alguns metros além deste, contra o que era costume dada a exiguidade do espaço. No entanto, os afazeres do pároco não lhe permitiam ficar por ali nem pretendia exercer ação policial e, desta maneira, logo que ele partiu, todo o espaço em redor foi ocupado e rapazes e moças puderam divertir-se a seu grado.

    No entanto, o procedimento do senhor Doutor Souto Vaz era mais repressivo em relação aos sobrinhos e filhos dos seus primos direitos por cuja educação se outorgava responsável. Uma das suas irmãs ficara viúva menos de quatro anos após o casamento e acolheu-se, com os dois filhos, entretanto nascidos, na casa da sua família de origem. Ali viviam ainda um irmão e uma irmã, solteiros, além dos dois padres, sempre que as respetivas obrigações lhes permitiam algum alívio. As crianças ficaram assim sob a tutela dos clérigos, sobretudo do senhor Doutor Frederico, com o beneplácito da mãe que tinha por ele, para lá do amor fraternal, uma admiração a toda a prova. A filha mais velha seguiu o percurso de qualquer criança da aldeia, frequentou a escola primária e, nos tempos livres ajudava a mãe naquilo que estava ao seu alcance. O irmão ainda não completara um ano quando ficou sem o pai. Mas, desde que foi viver na casa dos antepassados maternos, entrou na zona de sombra projetada pelo tio Doutor. Com alguns problemas de saúde e carência de afeto, depois de concluído o ensino primário, matricularam-no no Liceu. A mãe deslocou-se para a cidade com os dois filhos para dar assistência ao rapazinho mas a presença assídua e rigorosa da sotaina retirava ao miúdo toda a alegria de que uma criança precisa para se desenvolver. Se os resultados escolares não eram satisfatórios, repreensões e castigos não se faziam esperar. Reprovou alguns anos e, terminado o 5º Ano, o tio entendeu que a melhor solução era mandá-lo para o Brasil onde continuou a ser acompanhado por interposta pessoa. Voltou a Portugal, fez o Magistério Primário e ei-lo professor. Algum tempo depois, casou e ganhou asas para escapar, finalmente, à negativa influência do tio.

    O Joãozinho foi, sem dúvida, a grande vítima do “tio doutor”, mas todos os sobrinhos e filhos dos seus primos direitos tiveram histórias de intromissões indevidas no percurso que os conduziu à idade adulta.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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