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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 17-04-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Negaças do tempo e da vida

    Nesta época do ano, até os desertos mudam de humor. Os sítios mais inóspitos apresentam, aqui e ali, desmentidos à sua condição, plantas reverdecem, algumas flores de rara beleza despontam, há tons inesperados por toda a parte. Face às incongruências atmosféricas, julgaríamos que a natureza se tinha deixado enganar “por falta de informação” como referia a Mafalda numa tira da genial criação de Quino. Verificamos, porém, que os humanos devem ser os únicos seres vivos aos quais os elementos conseguem ludibriar. Com a entrada violenta da primavera, na sequência de um inverno fiel às suas características, não fora o calendário tornado guia indispensável da ação humana, e duvidaríamos dos ensinamentos que os nossos predecessores nos legaram. As temperaturas lembram-nos a última fase do outono como se tivéssemos regredido ao período das castanhas, da apanha da azeitona e das matanças; chove dias seguidos, persistentemente ou em regime de aguaceiros, segundo os caprichos do tempo; aumenta o caudal dos rios, que inundam as margens e submergem habitações e haveres, chega a cair neve nos lugares mais elevados do país; há derrocadas e aluimento de terras em sítios de todo imprevistos, não causaria surpresa se, de um dia para o outro, os termómetros enlouquecessem e atingissem valores muito além do que é normal para os meses que vão decorrendo.

    Aproveitando uma rara oportunidade, fomos passar uma semana ao sul do país. Uns dias antes, suspirávamos por dias menos húmidos visto que a chuva não havia maneira de nos largar. Foi quando pessoa amiga nos deu a informação de que estava a usufruir de uns dias agradáveis algures naquela região, o que nos animou sobremaneira. Não choveu durante a viagem embora o sol se mostrasse avaro, espreitando agora e logo sem nenhuma convicção. «Talvez a partir de amanhã as coisas melhorem», pensámos. Mas, nos dias seguintes, chovia a espaços, o céu abria por algum tempo criando a expetativa de que «agora sim, o tempo vai melhorar», mas, de um momento para o outro, a chuva reaparecia para nosso desapontamento. Da janela, observávamos o vaivém das pessoas ansiosas por tomarem banho de mar. A grande piscina do empreendimento mostrava a teimosia de muitos, sobretudo estrangeiros para os quais a água devia estar deliciosa enquanto nós imaginávamos como nos sentiríamos atrecidos1 se nos atrevêssemos a fazer o mesmo. A praia privativa, a uma centena de metros, registava também alguma afluência provavelmente de ingleses, alemães, franceses e outros para quem as condições climatéricas eram, com certeza, bem mais agradáveis do que para os nacionais. Com razão, porque nós ainda tentámos imitá-los, aproveitando a ausência de chuva, mas não conseguimos entrar na água e retrocedemos para o areal cobrindo-nos com as toalhas, saudosos do aconchego do apartamento e da proteção das roupas habituais. No regresso, deparámos com a esplanada, em frente do hotel, completamente preenchida, homens e mulheres vermelhos como rosalgares, aparentemente acalorados a dessedentarem-se com bebidas frescas.

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    Sempre que o céu prometia tréguas, aproveitava para dar uma caminhada pelas imediações da localidade e, para minha grande surpresa, à margem da estrada ou dos carreiros por onde transitava, a natureza desmentia o mau tempo: plantas de um verde refulgente estendiam os braços como cachorrinhos que se enroscam às nossas pernas procurando afagos; logo atrás surgiam árvores de grande porte e basta copa semelhantes aos sardões2 do nordeste do país e folhagem de um verde mais escuro; mimosas e as primas acácias sorridentes nas suas flores amarelas e escarlates; aqui e além, erva alta de fazer inveja aos fenos dos lameiros que só atingem essas proporções dentro de dois a três meses e, com mais frequência, um tapete de erva miúda e tenra a descer das pequenas elevações para os buliçosos ribeirinhos que ainda corriam a céu aberto ou a estender-se até onde lhe permitia o cultivo de pequenas hortas. Por todo o espaço contíguo às áreas construídas, flores variegadas enterneciam olhares atentos e sensíveis exceto em lugares onde havia indícios de projetos interrompidos pela atual crise económica e financeira. Desde a nossa última estada na localidade há cerca de dois anos, o traçado urbano mantinha-se mas apresentava, agora, um ar desolado com muitas lojas encerradas incluindo as que, ainda há pouco, supúnhamos inamovíveis como farmácias, confeitarias e restaurantes. Delas só restaram os nomes apelativos em inglês e tudo quanto, exteriormente, podia fazer apelo a clientelas específicas da estranja. Também estas sofreram forte redução. Persistem as grandes unidades hoteleiras, ainda assim à força de campanhas promocionais intensivas e sedutoras e os estabelecimentos correlatos, também estes com preços bem mais atraentes e inovadores. Dizia-nos o taxista que nos levou à estação da CP:

    - A CEE arruinou estas terras, destruindo culturas tradicionais como a alfarroba, a amêndoa, o azeite. No lugar delas, instalou-se o turismo e todos se deixaram iludir pelas promessas de mais emprego e melhores negócios mas, vejam bem como isto está agora: os turistas escassearam e quase só aparecem nos meses de verão. São, sobretudo, estrangeiros porque os portugueses deixaram de poder vir de férias. Mesmo os ingleses, que enchiam os hotéis e gastavam dinheiro com à vontade, vêm cada vez menos. Durante alguns anos, os terrenos ocupados pelas alfarrobeiras, as amendoeiras e os olivais transformaram-se em bairros de luxo onde os nacionais compravam casas de férias. Agora deixaram de vir, querem vender as casas mas poucos o conseguem, mesmo assim a perderem muito dinheiro. Nesses anos de abundância, não parávamos um instante, agora ocupamos as praças de táxis, ficamos horas à conversa ou a ouvir rádio e vamos saindo a conta gotas e para corridas de poucos quilómetros. Antigamente, fazíamos ajustes para uma manhã ou uma tarde e íamos por aí fora mostrando-lhes os sítios de maior interesse. Isso “foi chão que deu uvas”.

    Falar sobre as atuais condições de vida é tão vulgar como discorrer acerca do estado do tempo. É conversa estafada que traduz o estado de desalento que se apoderou de todos nós. Uma boa notícia é, hoje, quase tão rara como um dia de sol.

    1 Atrecido – cheio de frio.

    2 Sardão – árvore da família da azinheira.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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