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    Arquivo: Edição de 23-11-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    O dia em que o meu país parou

    Dia 14 de novembro parava o meu país – os portugueses mostravam desta forma o seu descontentamento pelas medidas de um Governo eleito. Tudo a fazer parte de um processo democrático: o voto, o direito à greve e o direito de não concordar com a greve ou seja, a liberdade de se ser. Aqui, lembro uma reflexão que escrevi em abril sobre tempos duros de contestação em que eu tinha que ficar do “outro lado” e sempre fui respeitada por isso. Passaram mais de 30 anos e a minha cultura democrática foi-se apurando a par com a maturidade e os desafios que aprendi a ultrapassar.

    Refletindo sobre a ideia que tenho de “paragem” para o meu país, esta teria que ser bastante mais exigente na sua aplicabilidade, porque ao pararmos, esta atitude deveria ser uma ausência de trabalho para mim, mas também um tremendo respeito pelo “outro”, que não é aquele que não quer parar – eu refiro-me ao que quer parar, usufruir da democracia conquistada para o seu país e não o pode fazer por motivos que se prendem com o facto de ocupar um posto de trabalho em que têm que ser garantidos os serviços mínimos ou ainda porque põe em risco o seu posto de trabalho, sob ameaça de despedimento, ou ainda porque o que lhe seria retirado no salário faz falta num tempo em que tudo é pouco.

    É lógico que o facto de trabalhar numa área de carência social e económica me mudou a mim, e – estou certa – também mudaria muita gente no respeitante a conceitos que temos interiorizados e paradigmas que nos caem por terra, além de juízos de valor que aprendemos a não fazer sobre o que deveria e não deveria ser do direito de cada um. Acima de tudo, passamos a desejar que quem nos bata à porta nunca seja um conhecido, um amigo e até um inimigo – que no meu conceito encarna a figura do que não quero ser ou a pessoa com quem nunca me quereria parecer.

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    Aprendi também que nos diversos patamares em que a sociedade nos colocou há uma coisa em que todos usamos, a mesma “bitola” para medir um bem supremo e um sentimento universal: o amor, acima de tudo pelos filhos e de seguida o amor que dobra – pelos filhos dos nossos filhos. É em nome disso que muitas vezes as pessoas não param quando queriam ou até quando deveriam, por serem os primeiros lesados. É comum ouvir-se: «Nós, adultos, viramo-nos, mas… os idosos e as crianças?». Neste ponto dói, sempre doeu e sempre há-de doer que um filho peça algo que até seria legítimo ter e os pais não lheopoderem dar. E isso é mais do que sobejamente conhecido por todos nós, que também já fomos filhos.

    Serão muitas dessas pessoas, as tais que não podem dizer não acima de tudo pelas “bocas que têm que alimentar”, que nos atendem nas esplanadas, nos cafés, nas lojas, nos supermercados e até hipermercados que se enchem nestes dias em que o meu país para, porque também se aproveita para se conviver, para ir fazer as tais compras necessárias e em que muitas vezes não temos disponibilidade para o fazer em fins de semana. Nem sequer nos lembramos que nestes dias também está ali, sempre, o rosto de alguém para nos atender e que precisou de abdicar do convívio com a sua família e muitas vezes dos seus próprios valores. No meu país, democrático e livre – pelo menos é assim que gosto de pensar –, já era tempo de não olharmos para o nosso umbigo ou ainda apontar o dedo ao “outro”, que não ousou parar – e aquele a que me refiro não é o tal a quem lhe falta a crença numa causa mas sim aquele que já é vítima de medidas que estão a ser tomadas e que são duras, principalmente para os que já nada ou pouco têm para viver com dignidade.

    Se calhar devíamos parar, abdicar de sermos atendidos por pessoas, que também são… humanas e como opção alternativa seria útil aproveitar estes momentos para reunir em família, ou em grupo, sentados em casa, nos jardins públicos ou até mesmo junto ao mar, para repensarmos nos valores da nossa causa – valorizar o que realmente conta e desvalorizar o supérfluo. Acima de tudo, explicar aos nossos descendentes e aos mais jovens, aqueles que vão herdar o nosso país, quanto custou a conquista da liberdade e o preço que nós, eles e os que lhes irão suceder, vão pagar pela sua perda, tendo em conta que, de forma direta ou indireta, estamos todos a hipotecá-la pouco a pouco.

    Um exemplo mais do que significativo – o dia 1º de Maio, em que ninguém resistiu à tentação e ao apelo de invadir supermercados na procura das famosas promoções. Também neste ponto estamos todos “misturados”, pois se fôssemos a hastear a bandeira do partido político que cada um adotou como seu, se calhar ficaríamos surpresos com o resultado de uma simples regra de adição. Também e se calhar, muitas destas pessoas terão sido as mesmas que estiveram na primeira linha da festa que foi poder comemorar-se um dia universal que foi instituído para homenagear o trabalhador, incluídos os que semearam, colheram e carregaram os camiões, assim como os que abastecerem nesse dia as bancas e prateleiras para as nossas compras.

    Hoje, em dia em que o meu País parou – penso que acima de tudo e cada vez mais que não teremos o direito de apontar o dedo a ninguém porque, em consciência, também ninguém se poderá atrever a ousar e afirmar que amanhã tudo poderá ser diferente porque isso só poderia acontecer se todos nós quiséssemos, se o país tivesse um plano B, se estivéssemos preocupados em formar líderes que soubessem comandar sem manejar a força da sua espada. Nas “guerras”, nas crises, no desemprego, sobra e sempre irá sobrar para os mesmos porque, se calhar, em momentos críticos, aqueles que mexem com a nossa própria zona de conforto, o comportamento humano será também “cada um por si e só “Deus por todos”. Este texto, por isso mesmo, não é um “julgamento”.

    Por: Glória Leitão

     

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