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    Arquivo: Edição de 17-09-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Onde está a lógica da receita económica?

    Mal se desvaneciam os grandes rigores do inverno, o lavrador retomava a dura faina de sempre. E eis que, por caminhos íngremes, irregulares e pedregosos, os carros de bois com o seu carrego deviam transitar segundo as precauções que aprendera a tomar desde criança na companhia do pai que, por sua vez, as aprendera do seu. Será pouco avisado quem julga não existir ciência, arte e engenho nesta aprendizagem de geração em geração com acréscimos pessoais ditados pelas circunstâncias do tempo em que a cada qual foi dado viver, por inovações técnicas que, em sucessivas épocas, foram sendo acrescentadas ao saber acumulado.

    A configuração do jugo permitia jungir animais de força idêntica ou de força desigual situação esta em que, quando se apunham ao carro, se “botava uma correia” (1) ao mais possante, em casos de maior disparidade duas, fazendo pender para o seu lado superior peso da carga a transportar. Imagine-se que o lavrador possuía um touro de cobrição e um boi castrado. Era natural que o primeiro tivesse mais força do que o segundo e o dono de ambos sabia-o por experiência adquirida. Na época da recolha do feno ou na acarreja (2) do cereal, quando os eixos dos carros cantavam no atrito com as treitouras, (3) era de fulcral importância que os dois bovinos puxassem harmoniosamente de forma a garantir o equilíbrio do veículo e que o condutor se mantivesse bem atento para que as rodas não resvalassem em pedra do caminho ou uma delas não entrasse em desnível capaz de provocar oscilação acentuada, condicionando a segurança do conteúdo ou viragem do próprio transporte o que provocaria também danos aos animais. O lavrador devia conhecer muito bem a força de trabalho que tinha ao seu dispor, distribuir o esforço dos animais de forma equitativa, mais exigente para o forte, algo menos difícil para o que tinha atributos físicos limitados.

    Em gerações anteriores, as famílias eram numerosas porque assim o exigia o tipo de agricultura praticado. Quantos mais filhos, mais braços para ajudar. Do mais velho ao mais pequeno, logo que este atingisse seis ou sete anos, cada um dava a sua contribuição para o esforço coletivo. O mais velho assessorava o pai no planeamento e execução dos trabalhos e, pouco a pouco, substituía-o nos mais pesados; aos que vinham em seguida eram atribuídas tarefas progressivamente menos duras até ao menino a quem não se exigia o emprego da força nem algo cuja execução implicasse para si qualquer risco físico: tomar conta da cria, (4) cortar uns guiços (5) para acender ou alimentar o fogo da lareira, ir buscar água à fonte, seguir adiante dos bovinos que puxavam o arado ou charrua empunhado pelo pai ou por um irmão para que os sulcos fossem a direito. Sempre que alguém da cidade se espantava com o recurso ao que, mais tarde, se chamou trabalho infantil, ouvia a consabida expressão:

    – Trabalho de menino é pouco mas quem o despreza é louco.

    Se esta regra prevalecia no campo, outra não era a natureza do sistema utilizado pela comunidade piscatória. O principal instrumento de trabalho dos forçados do mar ou do rio era a rede cuja malha não deveria ser muito estreita para que os juvenis pudessem escapar, capturando apenas os peixes de maior envergadura. Deste modo era preservada a continuação da espécie, permitindo que crescessem até à idade de procriar.

    Que médico ou nutricionista recomendaria aos seus pacientes com excesso de peso que jejuassem “a pão e água” ou que fizessem somente uma frugal refeição diária? Hoje, está cientificamente provado que o combate à obesidade deve resultar não de uma dieta de jejum rigoroso mas da conjugação de três fatores essenciais: exercício físico e fuga à vida sedentária; alimentação regrada, se possível com quatro ou mais refeições diárias baseadas no consumo preferencial de peixe ou de carnes brancas, legumes, frutas e limitação conscienciosa de produtos gordos, enlatados, açúcares; acompanhamento médico e, se necessário, medicamentoso, com análises clínicas frequentes e outros elementos complementares de vigilância.

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    E estes comentários e sublinhados vêm a propósito de quê? – perguntarão os leitores. A propósito dessa coisa misteriosa, hoje hipervalorizada que dá pelo nome de Economia. De há alguns anos a esta parte, todos os grandes cérebros que seguiram essa via têm uma auréola de sábios. Os programas dos vários canais de televisão e estações de rádio solicitam-nos, às vezes individualmente, outras em pares, uns tantos à compita à volta de uma mesa que já não pode ser redonda pois que não dá jeito para as câmaras dos técnicos. Servem-se dos jornais para demonstrarem a sua erudição. Os telespetadores acolhem as suas opiniões como se fossem matéria de Fé, muitos não conseguem entender aquela gíria erudita misturada com siglas, gráficos e números, muitos números, mas, se os iluminados assim falam, então deve ser verdade. A verdade! Dizem por aí que cada um tem a sua verdade, talvez por isso é que a nossa Justiça está como está, cada um apresenta a sua verdade e, de tantas verdades em confronto, não resulta verdade nenhuma. Passaram para a retaguarda os engenheiros, os sociólogos, – que é feito deles? – os advogados, os professores que não sejam de economia, e tutti-quanti. A ribalta é deles, dos Economistas. As pessoas esquecem que a economia não é uma ciência exata, que não há receitas infalíveis, que são diversos os caminhos para alcançar os objetivos pretendidos.

    O nosso ministro das Finanças segue as orientações da Escola de Chicago, declaradamente liberal, tornada célebre porque dela são ou foram catedráticos professores laureados com o Prémio Nobel. Com esse lastro mais os cargos que tem desempenhado na sede da União Europeia, uma vez investido no seu cargo, desata a cortar em salários, pensões e subsídios dos funcionários e aposentados da Função Pública porque, no seu entender, desfrutam de um nível de vida de nababos claramente acima das suas necessidades e dos seus merecimentos, investe contra a pecaminosa classe média que se banqueteava “à mesa do Orçamento”, alarga os seus horários de trabalho e a carga de tarefas antes repartidas com outros que foram dispensados por terem optado pela reforma ainda que com penalização por mútuo acordo (?), não renovação de contratos, corta subsídios aos pensionistas, toma medidas conducentes à falência de incontáveis empresas, originando um índice de desemprego dos mais elevados da Europa, cria condições para exaurir uma economia que dificilmente conseguirá retomar o caminho da prosperidade e retira meios para que os cidadãos possam ter uma vida digna com saúde – muitos já não têm dinheiro para adquirir medicamentos indispensáveis aos seus males – e uma alimentação digna que há muito não conseguem ter.

    Ao contrário do lavrador que busca no animal mais forte a compensação para as limitações do mais débil, que distribui os encargos familiares pelos membros do agregado consoante as respetivas forças e capacidades a que os mais pequenos são poupados; do pescador que se empenha em capturar os exemplares mais graúdos e nédios do cardume e esquece os juvenis; do clínico que rejeita a solução da fome para combater e prevenir o excesso de peso e opta por uma dieta equilibrada que preserve a saúde do paciente, o Governo deste país, enquanto proclama a equidade na distribuição dos sacrifícios, não reduz significativamente o peso do Estado na economia, “esquece-se” de apoiar as empresas para dinamizar o crescimento económico, protege os detentores de grandes fortunas, gestores, administradores, especuladores de todo o tipo e finge ignorar os efeitos catastróficos das medidas que põe em execução tais como os aumentos cegos dos impostos. Aqueles obedecem às leis naturais porque a Natureza lhes transmitiu esses ensinamentos ao longo de milhares de milénios. Onde está a lógica da receita económica que, agora, tanto valorizam? Lá vêm os economistas dizer que esta é uma visão simplista e ignara da realidade. Pois digam, se preferem continuar aplicando receitas que não têm remissão. Será que algum dia vão responder por isso?

    (1) - “Botar uma correia” – Ao apor o carro ao jugo, apertar o subeio inclinando-o para o lado do animal mais forte mais uma volta.

    (2) - Acarrejar - ato de transportar o cereal da terra donde foi segado para a eira onde será debulhado.

    (3) - Treitouras – dois pares de pinos que seguram e equilibram o eixo do carro de bois, um par de cada lado da aixeda.

    (4) - Nome genérico atribuído aos animais de tiro.

    (5) - Lenha mais miúda das árvores que ajudam a acender e a alimentar a fogueira.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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