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    Arquivo: Edição de 17-09-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    A senhora que vendia tremoços

    Oitenta e oito anos é uma “idade de respeito”, ainda mais quando as pessoas mantêm as memórias frescas como é o caso da D.ª Conceição, que por falecimento do marido precisou de deixar o seu cantinho junto ao largo da feira da Santana e vir morar para casa da sua única filha, minha vizinha e que agora abriga debaixo do mesmo teto quatro gerações de mulheres.

    Não é fácil ter que se mudar “de rota” mas ao contrário das mobílias e utensílios que muitas vezes têm que ser deixados para trás, neste caso, esta senhora trouxe consigo as suas histórias e as suas memórias e eu aproveitei um bocadinho da tarde de um domingo para ouvir alguns dos seus “pedacinhos de vida”, que começaram na venda de tremoços, azeitonas e castanhas que assava no fogareiro.

    Alargou os seus horizontes e expandiu a sua área de negócio para refeições quentes que levava já muito adiantadas na sua confeção num “carroço” de duas rodas que transportava para a entrada da fábrica da “Leonesa” que na altura não tinha ainda cantina e alguns dos seus colaboradores encomendavam-lhe as refeições – algumas ela terminava de as fazer lá, como era o caso das sardinhas assadas.

    Trabalhou muito para ganhar a sua autonomia financeira e quando ela me falava disso eu recuei no tempo e a minha memória situou-se nos tradicionais campos de futebol onde havia sempre a “senhora que vendia tremoços” e que eram misturados com azeitonas, e tal como ela fazia, eram servidos num cartucho feito com papel de jornal e que tínhamos que comer rapidamente porque senão a humidade desfazia tudo e aí tínhamos que segurá-los na palma da mão.

    Também nessa altura era fácil consumirem-se velozmente porque, por norma, o cartuchinho era partilhado com os amigos – porque se fazia ponto de encontro de amigos nestes convívios futebolísticos, que se tornavam aferroados e bairristas ao ponto de meter muitas vezes a tradicional “porrada” que, quase sempre no final dava em aperto de mãos, à Homem.

    Como paredes meias com o terreno dos meus pais existia o campo de futebol de Vermoim e eu era miúda quando pela rede assistia aos desafios habitualmente, do outro lado da parede que delimita o nosso terreno sentava-se a “senhora dos tremoços”.

    Contudo, nesse tempo os meus olhos fixavam-se mesmo era nos caramilos e no formato das figurinhas que eram enternecedoras: guarda-chuva, galo, etc., e também nos pedacinhos de torrão que eram forrados em plástico amarelo fininho, que impediam que se lhes colasse a substância caramelizada ou ainda as pequenas chupetas açucaradas e coloridas a duas cores que faziam a delícia dos mais pequenitos.

    Depois disso, a vida engraçada como é, faz com que na Feira do Livro de Ermesinde rapaziada nova e já adulta, me “invadisse” o stand onde eu estava a colaborar – “A Voz de Ermesinde” – porque iam à procura de informação sobre a data em que se constituíram entidade oficial “Os Ultras de Ermesinde”, que apoiam de forma incondicional o seu clube de eleição – o Ermesinde Sport Clube.

    Voltei a ficar um pouco “pasmada” por gente jovem apoiar de forma tão veemente um clube local de futebol, constituindo-se tipo “força de elite”, aqueles que estão lá sempre a exibir as cores de um clube que os apaixonou sem explicações muito plausíveis – são porque são, e isto desde 1992, com a principal missão, que levam muito a sério: aplaudir e manter-se ao lado da sua equipa durante os 90 minutos do jogo.

    Nesta reflexão de domingo à tarde tenho pendurada na porta do meu cantinho das ideias o cachecol que comprava há dias aos “Ultras” e que vinha já com o “nó feito”, conforme me disse a pessoa que mo vendeu – era fácil ver que eu sozinha não me iria nunca desenrascar a fazer um nó que percebi também tinha a sua “técnica”. Tudo isto, na barraquinha que usaram para marcar a sua presença da festa de S. Lourenço e em que promoveram algumas atividades lúdicas e também de convívio e bem estar.

    Num bocadinho em que fiquei a conversar com eles disseram serem cerca de cinquenta e como eu, teimosa, insistia na pergunta «porquê abraçar esta causa e na forma empenhada como o faziam?», explicaram-me os motivos porque são tão acérrimos “militantes” deste clube constituído em 1936, que joga num estádio de sonhos – heranças de uma paixão que já lhes é transmitida em família, amigos que trazem amigos, necessidade de “fazerem parte” e ainda porque se identificam com os princípios de serem “Ultras”: desporto, bairrismo, espírito de grupo, alegria e boa disposição, a que vão acrescentar causas sociais que querem “apadrinhar”.

    Foto GL
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    O Ermesinde Sport Club joga efetivamente no “Estádio dos Sonhos” e a sua cor é o verde, que o povo diz ser a cor da esperança e eu percebi que em trabalho externo que faço nesta cidade onde trabalho, tenho passado várias vezes por lá e sempre achei parecido com um campo de futebol que nunca foi “estádio” e também não tinha o verde como cor mas sim o azul, da cor do céu – o campo de futebol de Vermoim.

    Já não é utilizado, e porque já não temos clube de futebol nem se justificaria – neste ponto nem sequer me vou desviar da minha reflexão e entrar em questões do “porque sim” ou “porque não”, dado que não serão da minha competência –, há tempos a Câmara mandou-lhe limpar os silvados e de repente lá estavam ainda os ferros que delimitam o campo pintados num azul já envelhecido pelo tempo, e ainda são visíveis os abrigos dos jogadores “da casa” e “dos visitantes”, os balneários e a casa do “guarda do campo” que tinha como incumbência avivar de branco as áreas de jogo e também cuidar dos equipamentos e limpeza dos balneários.

    Também agora já não se ouvem os altifalantes com a música alta e os miúdos que iam para lá jogar nos intervalos ou em dias de treino, imitando os jogadores que mais admiravam ou aqueles com quem se identificavam. Era também um sítio privilegiado para aprender a andar de bicicleta, como foi o meu caso, tendo em conta que era “planinho” e as possibilidades de darmos “um terno” eram mais reduzidas ou, a acontecerem, traziam menos danos físicos.

    Todos nós sabemos que a vida é mesmo assim, mas também, e felizmente, que ninguém nos pode “ceifar as lembranças”, e dava-me conta disso quando há uns dias, assistia deliciada ao desempenho da Orquestra Filarmonia de Vermoim, inserida nas festividades da nossa localidade. Compreendi as pessoas a quem ouvia dizer que faltava o “porco no parque” e até eu senti a falta da minha “sandes” do saboroso porco que era assado pelo nosso Sr. Zé Cozinheiro, que depois de reformado nunca se atreveu a parar e sempre esteve pronto e disponível para ajudar causas nobres e de cariz social.

    A vantagem de se morar numa rua de gente “madurinha” é mesmo podermos reavivar memórias e encontrar as pessoas de sempre e que não estando agora “no ativo” se mantêm teimosas a desafiar a vida conquistando novos prazeres e definindo novas vivências, mais curtinhas mas que, somadas entre si, correspondem a novas vidas, novas etapas que cada um vai superando conforme pode, ou conforme quer.

    Hoje, saudosista das memórias, que não serão somente minhas e antes de voltar à minha rua, passo nas minhas reflexões pelo largo da “feira velha de Ermesinde”, onde está localizada a sede do Jornal “A Voz de Ermesinde” e na sexta-feira, enquanto esperava pela camioneta que me haveria de trazer para Vermoim, olhei atenta para as letras toldo da padaria Lino, quase centenária naquele local, e dei-me conta que era ONIL, o nome que vinha escrito a picotado na regueifa da minha infância e que era tradição ser comprada aos domingos ou em dias de festa.

    Como era uma padaria onde costumava tomar o meu cafezinho enquanto esperava pela formação que frequentava no Centro de Formação do Centro Social de Ermesinde, “tive lata” para entrar e perguntar-lhes se eu tinha associado bem o nome. Simpáticos, como sempre, responderam-me que sim e ainda que não era permitido a ninguém usar aquele nome ou imitar o carimbo tendo em conta que era “patente registada” – a forma de garantir que os nomes, ou as ideias, ficam a pertencer historicamente a quem de direito.

    Agora sim, regresso mentalmente à minha rua e se já me tinha passado o susto porque a filha da D.ª Conceição, Isilda, esteve internada devido a uma queda e já regressou a casa, felizmente por ela e por toda a falta que faz à sua família e a nós, vizinhos de há mais de 40 anos e que o tempo transformou em amigos agora, volto a preocupar-me porque neste momento é o Sr. Albino, o pai da “Rosinha da Farmácia” (e de mais seis irmãos que ela tem), que está internado no hospital.

    Eu quero mesmo que ele fique melhor para ter alta e desta forma poder continuar a receber o seu acenar como saudação e quando vem de visita à sua filha ou também quando esporadicamente nos cruzamos no “Santiago” poder ouvi-lo dizer-me: «Com o devido respeito, posso pagar-lhe um cafezinho, menina?». Não era fácil dizer que não, porque este senhor pertence ao punhado de gente que sempre me respeitou, na condição de ser humano e de mulher.

    Penso ainda que é uma das pessoas que sempre entendeu que o meu rir, era somente porque me começava a sentir melhor – a levantar-me e a erguer-me de dentro de mim mesma, alegre e irreverente como sempre me conheceram, respeitando-me e fazendo-me respeitar e é por isso que eu, com o “devido respeito” que sempre lhe tive, Sr. Albino, preciso de lhe dizer que são atitudes como a do senhor que ajudam a que uma mulher se sinta…mulher, com tudo o que de dignificante representa esta palavra que é fácil de soletrar porque tem somente seis letras e nunca se medirá em tamanho, como deve ser, como tem que ser.

    E era assim que terminavam estes “pedacinhos de vida” escritos em 19 de agosto. Só que, no dia 1 de Setembro, ao ver passar um dos filhos do Sr. Albino, o Augusto, que também é meu amigo e foi meu colega de trabalho, perguntei-lhe pelo pai. Disse-me: «Teve alta, ando a dar uma voltinha com ele e trouxe-o a casa da minha irmã». Atravessei a rua e fiz questão de ir lá e dizer-lhe ainda que era muito importante que ele ficasse bom porque, acima de tudo, ele era um homem corajoso, para quem a vida não tinha sido fácil e voltava neste momento a exigir dele uma grande força para ultrapassar mais uma etapa difícil, agora acrescida pelo amor e o respeito de uma família e de todas as pessoas amigas que também o consideram, como ele merece.

    Por: Glória Leitão

     

     

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