Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 22-03-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Tudo bons rapazes!

    «Eu gosto de estar sempre de bem com toda a gente, e quero que toda a gente se sinta feliz. Uns são capazes de estar assim na vida outros não». Foi isto que me escreveu uma das inúmeras pessoas com quem trabalhei desde 1978 e durante 12 anos. Já não comunicávamos desde 1989 e, quando foi publicado o testemunho do RVCC em “A Voz de Ermesinde”, de repente recebo um mail que me faz vir as lágrimas aos olhos porque aquela pessoa, que representa todos os colegas de uma vida, bocadinhos de um passado feliz, lê e arranja forma de conseguir o meu mail, onde me escreve – «Como estás?».

    Não foi pelo que lhe disseram, pelo que ouviu dizer, pelo que se consta, estende-me uma mão amiga e eu penso que amizade é isso mesmo – reapareceu e ficou –, amigo, a exemplo de outros que se lhe seguiram, e aqui também uma das lições que aprendi da vida porque, se calhar também eu, já tinha deixado alguém para trás, esquecendo-me do papel que deve desempenhar um amigo.

    À frase que um dia escreveu e com que abro este apontamento, respondi-lhe que esta forma de estar era uma atitude sábia e elevada, carregada de bom senso, e eu estava contente porque, na minha vida, na minha amizade, construída a conta-gotas, reentrava uma pessoa que, felizmente, pertencia ao grupo dos que são “capazes de estar assim”, e era desse tipo de sentimento que eu precisava para fortalecer um dos pilares onde sustentava a minha nova construção – eu mesma.

    Naquela altura falámos de 2010, encontrar esta amizade foi um excelente motivo para me sentir feliz porque começava a escrever a medo – e faltava-me uma pessoa isenta e rigorosa que desempenhasse as funções de “crítico literário” das minhas reflexões, como lhe chamo, e com quem gosto de partilhar porque, sendo a vida como uma partitura de música escrita em tons diferentes, em algum momento seguramente se há-de cruzar uma nota musical, um sentimento, um bocadinho de uma vida que há-de parecer-se com a nossa.

    Depois também me ajudou muito reconhecer este sentimento em pessoas que são felizes com a alegria e a felicidade dos outros e eu gosto de conhecer gente que “é assim” – as que seguem uma “missão” em que acreditam: a procura da pedra filosofal, a metáfora que identifica o trabalho espiritual tendo em conta que a alusão que lhe fazem de transformação dos metais inferiores em ouro é uma forma de camuflar a espiritualidade que está subjacente ao indivíduo que a procura ou seja, a transformação de si próprio de um estado inferior para um estado espiritual superior e o laboratório onde é feita esta procura é a vida!

    Por ironia, camuflava-se através da manipulação de “metais” esta conotação espiritual que pode não estar ligada à religiosidade, tendo em conta que na Idade Média qualquer pessoa que se atrevesse a ser diferente era acusada de heresia, satanismo entre outras coisas, e era queimada na fogueira. Também por ironia, estamos em pleno Século XXI e as pessoas que tenham formas de pensar, de ser e de estar, diferentes, se não são queimadas na fogueira, são queimados pelos “media”, pela opinião pública, pelos seus pares e, muitas vezes, por pessoas em quem tiveram a ousadia de acreditar, num simples ato de se sentirem gente.

    Reencontrar esta amizade numa fase de balanço, como estava a acontecer comigo, levou-me a um passado engraçado, e um dia recebo no mail uma foto saudosa de mais ex-colegas de trabalho, todos equipados a rigor para o desporto que praticavam através da nossa empresa da altura – voleibol – e eu, enternecida, olho para aqueles rostos de 1980. Conhecia os seus nomes e até números de colaborador e voltei atrás, lembrando-me do quanto gostava de olhar para os seus equipamentos desportivos muito brancos e eu, na minha matreirice de jovem que era, fazia também a avaliação do jogador que tinha o mais bonito par de pernas, que se destacavam nas sapatilhas “tipo Sanjo”.

    Atrás deste amigo, vieram outros que parecia terem acorrido a um chamamento “Lola, Lolita, Lola!”, como sempre carinhosamente fui conhecida por todos; estava a precisar de amigos e nas luzes que me têm sido colocadas no caminho comecei a cruzar-me com eles, onde voltei a encontrar o respeito, o carinho e a consideração que sempre lhes mereci e nem sequer me penalizaram por os ter “abandonado” durante mais de 22 anos em que estive ausente da amizade que sempre me devotaram.

    Fazer este backup, voltar mentalmente à empresa de menina e moça onde entrei com 17 e saí com 28 anos, fez-me lembrar conceitos de rigor, qualidade e exigência de desempenho, mas também me fez recordar travessuras e diabruras normais numa grande equipa de trabalhadores e que chegaram a ser mais de 800, onde somente haveria pouco mais de 60 mulheres.

    Nesse tempo, no meu tempo, no tempo de muita gente que por lá passou, as pessoas trabalhavam mas divertiam-se a fazê-lo, e sentia-se a harmonia e a camaradagem; ouvíamos cantar e assobiar pelos corredores, e convivia-se na sala que existia para esse efeito, praticava-se desporto, e era-se solidário, e era-se amigo, e este sentimento não se apagou no coração das pessoas que vou reencontrando, como aconteceu com um colega que, já reformado, me cumprimentava, e por ter percebido que o meu mundo tinha colapsado, lhe vieram as lágrimas aos olhos de emoção por perceber que a “garota” que eles sempre tinham protegido do sofrimento não lhe tinha escapado... e aqui fui eu que tive que o acalmar e dizer-lhe: «Já passou, agora está tudo bem!».

    Também num dia em que precisei de fazer uma “caminhada de despedida” – o limite era a “Boa Nova” – eu precisava de olhar o farol para me orientar em decisões que precisava de tomar em relação a coisas que deixaram de fazer sentido na minha vida, e eu tinha que “arquivar”, porque, por serem de fantasia, ocupavam espaço útil para aquilo que estaria na minha mão conquistar, trabalhando arduamente, e aqui também me ajudou interiorizar o que está escrito na quadra de um poema de António Nobre lá afixada, junto ao mar:

    foto
    Na praia lá da Boa Nova, um dia,

    Edifiquei (foi esse o grande mal)

    Alto castelo, o que é a fantasia,

    Todo de lápis-lazúli e coral!

    Na viagem de regresso e também de despedida que queria voltar a fazer a pé, chovia copiosamente e, casualmente, a vida cruza-me com o ex-colega que ficou amigo, e que se atreve a “gostar de estar de bem com toda a gente e querer que toda a gente se sinta feliz” e, numa boleia até à estação de metro, onde fui protegida da chuva, a despedida foi um abraço, o tipo de abraço que concentra a saudade, a amizade e também a solidariedade que sei que representa todos os outros com que a vida me vai cruzando lentamente, quer seja no caminho, no mail ou no facebook, onde também recebo frases de incentivo e poesia e música.

    Um dia, quando precisei de ter a certeza de quem fui e queria voltar a ser, interpelei um amigo e ex-colega e pedi-lhe se ele, de forma espontânea, me definia alguma das características que ele atribuía à “Lola” (agora a Glória), a colega de trabalho da época de 1977/1989. Respondeu-me: alegre, irreverente, respeitadora, de fácil convivência e curiosa, sempre pronta a aprender – era isso mesmo que eu tinha encontrado na “alma” da miúda com 19 anos que pude ir buscar ao outro lado do espelho.

    Atualmente o autocarro que me transporta todos os dias para o meu trabalho e a caminho de Ermesinde passa em frente a esta empresa que, felizmente, ainda está saudável e em laboração, e que foi a minha primeira grande escola de vida. Olho para ela com saudade e todos os dias penso que tive sorte por ter lá passado, que tive sorte por ter convivido com este grande grupo de gente que, na sua maioria, eram todos “bons rapazes”.

    Por: Glória Leitão

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].