Andar ao respigo
Muito antes de poder apreciar a célebre pintura de Millet (1857), “As Respigadeiras”, onde se observam camponesas pobres na recolha de espigas de trigo, após a colheita realizada, já tinha o vício de andar ao rebusco das castanhas, azeitonas, do cornecho (cornelho) das espigas do centeio e, principalmente, ao respigo nas vinhas vindimadas, apesar de ainda ter cachos pendurados em casa, e na ramada do prédio, podendo continuar a colher as uvas pela janela do quarto!
O mais difícil era ter pouca força para abrir a janela de guilhotina, ter de enxotar as abelhas a libarem os sucos refinados, para apanhar os cachos fora de época, enquanto os moços amigos não tinham esse privilégio. Não podendo dar a todos uvas da minha parreira, íamos ao respigo! A vinha do Vale da Trave era a primeira escolhida, antes que o pastor das Fragas, Zé Manuel Beiço Rachado, fosse autorizado a enfiar lá as cabras, a comerem a viçosa e abundante folhagem.
Andar no respigo requer argúcia: vistoriar bem as videiras mais frondosas, onde os pequenos cachos não eram tão procurados, devido às distrações da vindima; nas bordaduras das vinhas na sombra do arvoredo, e não só, as videiras eram raquíticas que quase não davam fruto, ou por esparsas escapavam à apanha; os rapazes das cestas e apanha dos bagos eram coniventes nos esquecimentos! Bem respigadas as nossas vinhas passávamos às dos vizinhos mais ricos, pois as dos remediados nem davam para o desougo, quanto mais encher um boné! A vinha mais lucrativa era a vinha grande dos Roseiras (Maria de Belém estava para nascer)! Como fazia parte de outras, era contratada uma roga, orientada pelo rogador de Ludares, de sacho na mão, a comandar o rancho. Duas vindimadoras, uma de cada lado do bardo, interessadas, em encher as cestas rápidas, desprezavam as videiras dispersas e raquíticas, que podiam não ter cachos. Pois eram essas as fornecedoras das uvas de respigo finas e doce do “Verão de S. Martinho”! Na divisão da colheita faziam um lote especial, fora de outros cachos ou outoniços maduros.
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Pintura JEAN-FRANÇOIS MILLET |
No fim de semana fui a Soutelo do Douro. Estava longe de pensar em ir ao respigo, mas...
Quando subia do Pinhão para S. João da Pesqueira, reparei nos vinhedos bem diferentes dos outros anos: os deslumbrantes matizados das folhas era diferente! As videiras pareciam meio secas ou “alampanhadas” pelo fogo. Como ainda não era o tempo da apanha da azeitona nas bordaduras, as fogueiras não seriam a causa. Os tons abundantes e variegados da folhagem, tão apreciados pelos turistas, pareciam murchos, nos socalcos antigos e ainda resistentes, e nas encostas serpenteadas de patamares, alinhados como curvas de nível, em símbolo topográfico do Douro do Património Mundial.
Fui ver de perto uma vinha de eleição. Felizmente, mercê do bom desempenho agrícola, a precoce queda da folha não era grande, com a vantagem de se detetarem melhor os pequenos cachos não colhidos. Começou, assim, o meu respigo... Duplo prazer: voltar a ser menino e comer uvas frescas e super doces. Foi do ano especial – informou o João!
O Carlos, surpreso, agora que ninguém procura um respigo e ficam vinhas por vindimar, regressou por uma vinha, onde, deixou um valado de uvas de mesa a colher mais tarde.
Os cachos retirados juntaram-se aos respigados e aos dióspiros, para serem comidos no Porto, cidade que deu o nome ao vinho fino ou generoso do Douro.
Por:
Gil Monteiro
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