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    Arquivo: Edição de 15-02-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Dos fracos não reza a História

    Os homens providenciais nascem mortos: é isto que a experiência nos ensina. Nós sabemo-lo mas esperamos sempre que alguém apareça para resolver os problemas que afligem a sociedade, que nos atingem. Os portugueses intuíram o mito do “Encoberto”, que há-de vir um dia para eliminar, de vez, os seus complexos, a sua tibieza, a urgência de cada um assumir a quota de responsabilidade que lhe incumbe nos débitos sociais.

    Não há dúvida que alguns homens e algumas mulheres elevaram-se a um ponto inacessível para a maioria enquanto outros, por força de circunstâncias adversas, imprevisíveis e fatais não conseguiram alcançar objectivos a que se propunham e que o grupo esperava deles. Já os romanos proclamavam “vae victis!” (ai dos vencidos!), porque só os que logram ultrapassar com sucesso todos os obstáculos que lhes empecem o caminho terão direito à consagração dos contemporâneos e à lenda de que se reveste a sua memória para os vindouros.

    Forma diversa de chegar à “mitificação” é a morte com laivos de tragédia que leva muitos a presumir não ter o herói cumprido a missão que dele se esperava, porque “um poder mais alto” o impediu. A morte, sendo embora natural a todos os seres vivos, é, frequentemente, considerada injusta. Talvez porque ela põe termo não apenas à existência a que cada um julga ter direito mas, de igual modo, isenta o finado de responsabilidade face às leis humanas, somos inclinados a atribuir-lhe excelsas qualidades e a esquecer os seus erros e defeitos. D. Sebastião perdeu-nos, perdendo-se, a sua demência projectou-se muito para lá da sujeição nacional ao domínio espanhol, atrofiou o nosso destino como grande nação que fomos e, não obstante, representa para grande parte dos portugueses a ressurreição do orgulho nacional que, nessa horrível noite de Alcácer-kibir, pereceu. Porém o mito excede largamente a figura em que se consubstancia. Esperámos e continuamos esperando que alguém se revele capaz de concretizar os nossos anseios. Não foi Salazar, mau grado a mística que teceram em torno da sua pessoa; não foi Sá Carneiro, mesmo “ajudado” pela tragédia que o vitimou; não foi Cavaco Silva ainda por muitos encarado como salvador. Teremos que ser nós, cada um de nós a sobrepujar as próprias limitações e, em simultâneo, a destruir os fantasmas que nos paralisam e a procurar, no outro, parceiro de caminhada e não vítima da nossa mesquinhez. Homenagear os nossos heróis é louvável porque foram exemplos de coragem e de confiança nos seus concidadãos que devemos imitar.

    Nos Estados Unidos Abraham Lincoln tornou-se um ícone da liberdade e da defesa intransigente dos valores que estavam na génese da nação. Assassinado, pouco após o final da Guerra de Secessão, transformou o seu próprio sangue num pacto de união entre todos os seus conterrâneos. Conquanto ele continue a ser para os norte-americanos uma das maiores referências históricas, não vêem, com olhos saudosistas, que regresse “num dia de nevoeiro…” para reerguer o país, ainda que este venha a perder a influência mundial que, por mais de um século, tem exercido. Nem Kennedy, também assassinado, nem qualquer dos patriarcas da independência entraram na alma dos seus concidadãos como uma doença e, simultaneamente, um refrigério nas horas de angústia e em momentos de crise.

    A eleição de Barack Obama para a presidência dos EE. UU., o primeiro cidadão negro a “voar tão alto”, estimulou as glândulas emotivas de norte-americanos e de estrangeiros e continua a merecer hosanas e a justificar as mais diversas análises de cariz sociológico. Como sói acontecer, as análises acabam por ser parciais e/ou inconclusivas, até por falta do distanciamento que um qualquer fenómeno requer. É verdade que os negros entraram em transe, as minorias exultaram, os brancos reagiram com entusiasmo, aparentemente, irmanados aos demais em torno das promessas de mudança, alicerçadas na convicção do “Yes, we can”, repisadas pelo candidato ao longo de toda a campanha. Esta convicção repousa na mudança política, sem dúvida, sobretudo naquilo que as pessoas consideram como “necessidades” para a sua vida de hoje e de amanhã.

    Em Sociologia, a Mudança Social é um dos capítulos mais importantes e definidores desta jovem Ciência. É axiomático e unanimemente aceite pelos que se dedicam ao estudo das Ciências Sociais que a mudança opera-se muito mais depressa quanto aos elementos materiais da cultura do que no que concerne aos elementos não materiais. Quando se fala em elementos materiais da cultura referimo-nos, grosso modo, à Ciência e à Técnica enquanto os elementos não materiais englobam valores, praxes, crenças, tradições, sentimentos, emoções. As conquistas científicas e técnicas têm-se processado tão rapidamente que também os elementos não materiais da cultura se têm alterado a um ritmo mais acentuado do que noutras épocas, de maneira desigual, é verdade, mas bem perceptível. No presente, fala-se muito em alteração (crise) de valores como responsável por outras modificações de comportamentos, mas esquecemo-nos de que, em poucas décadas, “evoluímos” mais do que nas últimas centúrias. De propósito, escrevi entre parêntesis a palavra evoluímos, porque é discutível que os passos, entretanto dados pela Humanidade tenham correspondido, de facto, a uma evolução.

    De regresso à escolha do actual presidente norte-americano e em favor da necessidade de maior distanciamento para uma análise tão aproximada quanto possível, é muito difícil de aceitar que os segregados e humilhados de ontem mereçam hoje esta espécie de reparação nacional, quase diríamos global. Não esqueçamos que o século dezanove assistiu a violentas lutas com base no preconceito racial, que, em meados do século vinte, Martin Luther King organizou marchas de negros pela sua integração social, pela igualdade de direitos cívicos, arrastou multidões e enfrentou a cólera de milhões de brancos, terminando assassinado; que, em 1915 era criada a tenebrosa Ku-Klux-Klan, contando, sete anos mais tarde, com quase um milhão de membros, chegando a eleger congressistas e senadores, colocada fora-da-lei em 1946 e com actividades criminosas registadas ainda há menos de meio século; que, poucos anos atrás, existia apartheid em muitos Estados norte-americanos de que deu conta o próprio Obama, em recente discurso, falando por experiência própria; que, não há muito, foram registados assassinatos cruéis de negros por agentes policiais e que é indesmentível, quer na sociedade estado-unidense, quer noutras, a diferença no relacionamento entre as maiorias brancas e as minorias etnicamente diferenciadas.

    No meu entendimento, é muito cedo para que possamos descrever, com o exigível rigor, as características dum fenómeno tão surpreendente. Quando tal nos for permitido, além da notícia que preencheu os espaços informativos e analíticos, desde o dia 20 de Janeiro, saberemos se Obama terá sido a encarnação do mítico super-homem ou apenas um cidadão normal, certamente cheio de boa-vontade, todavia incapaz de ascender ao Olimpo, o espaço mítico dos deuses.

    Por: Nuno Afonso

     

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