Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 29-02-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 20-12-2008

    SECÇÃO: Arte Nona


    O tempo do nascimento

    Nesta quadra natalícia que atravessamos, achamos apropriado debruçarmo-nos aqui sobre uma obra precisamente destinada a falar do nascimento. Neste caso, o nascimento referido é ainda mais simbólico, pois é, nem mais nem menos, do que o próprio nascimento da Humanidade. Falamos de “Os Caçadores da Aurora”, de René Hausman, obra originalmente aparecida em 2003 na Dupuis e, no mesmo ano, editada em Portugal pela ASA.

    Hausman apresenta-nos aqui uma estória, sobretudo gráfica, em que o texto, ocupando um lugar residual – o estritamente necessário ao enquadramento da estória – tenta definir uma época em que ainda se desconhecia a comunicação através da escrita.

    foto
    A obra procura seguir o percurso da mulher Reeh, do seu relacionamento com o homem Kahn e da sua maternidade, no meio de numerosas personagens da vida do clã, dos confrontos com os seus inimigos, das rivalidades, das lutas e das caçadas.

    Desce assim aos tempos mais recônditos da civilização humana, à luta terrível pela sobrevivência, à descoberta das coisas que formam o mundo.

    O texto de Hausman mostra bem isso ao longo das suas legendas. Por exemplo: quando Kahn vai beber água e junto do lago se emparceiram vários animais: «Primeiro vêm, inúmeros, aqueles que têm os dentes curvos a irromper da boca, depois aqueles com a cabeça armada de pontas aguçadas e aqueles, mais pequenos mas também mais irrequietos, que revolvem sem descanso a terra em busca de alimento...». Ou descrevendo a passagem do tempo, nos seus ritmos anuais: «E passaram ainda muitas luas... até que finalmente se soltaram mil águas vivas, ao mesmo tempo que, finda a longa latência, despontavam os primeiros rebentos da nova estação». Ou ainda, introduzindo as primeiras emoções de carácter religioso: «...contou como os caçadores só conheceram infortúnios antes de decidirem trair a conivência sagrada com Baah, a avó dos seres. Contou os acessos de fúria do animal que o deixara inerte depois de uma expedição mal sucedida...».

    O desenho revela-se fácil, com o traço experimentado do ilustrador, aqui apimentado com a necessidade do processo narrativo: movimentos, emoções.

    A cor é como que saída do gelado permafrost que constituiria o habitat destes homens do frio glacial. Cores de terra e gelo, dias brumosos e de pouca luz, noites a intrometer-se pelo meio de tudo.

    As figuras humanas são desenhadas como se estivessem ainda a meio do seu percurso, mal acabadas de separar dos outros antropóides, mas já inteiramente humanas.

    Hausman desenha também uma série de bestas, sejam elas concorrência, alimento ou perigo.

    E enquadrando este conjunto de relações entre humanos e animais, o enredo escorre, fluido, vivencial, quase didáctico, nesta pequena margem entre o biológico e o psicológico que mal aflora.

    Enfim, uma belíssima obra imbuída do primordial sentido do Natal.

    A tradução da edição portuguesa esteve a cargo de João Silva, a adaptação é de Andreia Gomes e a legendagem de Jorge Ribeiro.

    René Hausman, nascido em 1936 em Verviers, na Bélgica, iniciou a sua carreira como quadrinista depois de ter sido, sobretudo, ilustrador, nas páginas de “Moustique” e “Spirou” entre 1958 e 1976. Nesse ano desenha algumas fábulas eróticas para “Fluide Glacial”, mais tarde reunidas e editadas pela Dupuis, em 1991, sob o título “Allez coucher, sales bêtes” (argumentos de Yann, Marcel Gotlieb, Christian Binet, Yvan Delporte, e outros). Publicou ainda “Saki et Zunie” (1980-1998), com Yvan Delporte nas Ed. Chlorophylle and Noir Dessin, obra originalmente iniciada em 1957, “Laïyna” (1987-1988), com Pierre Dubois, na Dupuis, “Les trois cheveux blancs” (1993), com Yann, Dupuis, “Le Prince des Ecureuils” (1998), igualmente com Yann, na mesma editora, o presente “Les chasseurs de l'aube” (“Os Caçadores da Aurora”, 2003), na Dupuis, e “La Grande Tambouille des Fées”, ainda em 2003, com Michel Rodrigue, publicada na editora Au bord des continents.

    É também conhecido como escultor, tendo obras suas, de Banda Desenhada, traduzidas em Alemão, Espanhol, Sueco e Português.

    Por: LC

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].