Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 20-12-2008

    SECÇÃO: Tecnologias


    A identificação da ideologia através da análise do discurso (1)

    Para realizar o objectivo deste trabalho – o exame do funcionamento do político no debate sobre o software livre tendo em vista uma análise dos sentidos – proponho a realização de alguns passos essenciais.

    O primeiro deles, e um dos mais fundamentais, é a análise de duas licenças que exemplificam o ordenamento do real proposto pelo software livre e pelo software proprietário. As licenças são contratos jurídicos que enunciam que tipo de relação aquele que paga poderá estabelecer com o produto software adquirido. Analisarei a licença padrão do windows 95 para pensar o software proprietário e a General Public License (GPL) para reflectir sobre o software livre.. No capítulo seguinte, procuro analisar um momento que penso fundamental para o software livre, o surgimento do termo código aberto e a criação da Open Source Initiative (OSI), instituição que em muitos momentos rivaliza com a Free Software Foundation (FSF). A OSI possui funções muito semelhantes às da FSF, mas o seu funcionamento discursivo e institucional mostra-se-á diferenciado.

    Uso o sentido de político aqui como

    o desenvolvido por Eduardo Guimarães:

    «O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que, deste ponto de vista, o político é incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada.

    Esta concepção nos leva a algumas considerações aparentemente contraditórias em princípio. O Político está assim sempre dividido pela desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o estabelecimento da desigualdade se apresenta como necessária à vida social e a afirmação de pertencimento, e de igualdade, é significada como abuso, impropriedade».

    Como veremos mais adiante, a afirmação de pertencimento, de igualdade, que impulsiona o movimento software livre, será classificada, por executivos de empresas de software proprietário, como abuso, impropriedade, algo que seria capaz de corromper a integridade social e do mercado capitalista.

    Disputa de sentidos em torno do movimento:

    unamerican – exemplo de algo impróprio

    No mês de Fevereiro, no mesmo ano, declarações de outro executivo da Microsoft, Jim Allchin, também geraram grande repercussão entre a comunidade envolvida com o software livre. Allchin afirmou que o software livre ameaça a propriedade intelectual e afirmou que a sua empresa, até àquele momento, ainda não tinha feito o suficiente para mostrar isso àqueles que são responsáveis pelas políticas governamentais. A frase de Allchin, na formulação dada por uma reportagem, circulou intensamente pela internet: «I’m an American, I believe in the American Way (“eu sou americno, eu acredito no amercican way”)», disse ele. «’I worry if the government encourages open source, and I don’t think we’ve done enough education of policy makers to understand the threat (“Eu fico preocupado se o Governo encoraja o open source, e eu não penso que haja suficiente educação dos políticos para perceber a ameaça”)».

    Um dos motivos de a frase ter sido reproduzida intensamente pode ter sido a identificação de algo que pretensamente contraria o american way. Em diversos sites, a frase foi reformulada para algo como: «a Microsoft diz que o software livre é algo não-americano». O comentário abaixo é parte de um pequeno texto publicado no blog de um pesquisador (um biólogo interessado em software) e é uma reformulação desses dois comentários dos executivos da empresa e da declaração do executivo-chefe da Microsoft, Steve Ballmer, feita no mesmo período, e que comparou o software livre a um “cancro” :

    «Livremente disponível, o open source mina o modelo de negócio do software comercial baseado na venda de programas que os consumidores não podem modificar ou partilhar. O efeito “passa a outro” alarga continuamente a base de código que os programadores GPL podem estabelecer quando escrevem novos programas. É por isso que a Microsoft descreve a licença [GPL] como sendo “viral”, “um cancro” e “anti-americana” – ela mina a maneira de fazer negócios e continua a crescer».

    É interessante notar como o “ataque” verbal dos executivos da Microsoft ao software livre foi interpretado, por um autor brasileiro, como uma crítica à GPL. Na verdade, apenas o comentário de Mundie se refere especificamente a características da licença, os comentários de Balmer referem-se ao Linux e os de Allchin dirigem-se mais amplamente ao modelo do software livre. GPL, Linux e software livre são entendidos como um só. Como Balmer, assim como Mundie, usou uma metáfora médica, foi possível criar a seguinte formulação:

    «Agora foi a vez da GPL. Segundo a Microsoft, a GPL é anti-americana, “viral” e capaz de tornar todos os produtos de uma empresa “domínio público”. Não me surpreenderia se dissessem que ela também engorda e causa cancro em ratos de laboratório».

    O impacto da associação do software livre (e da GPL) a algo “não-americano” ou “anti-americano” foi algo tão forte que provocou uma resposta do presidente da Free Software Foundation, Richard Stallman. Na sua resposta, ele retrabalha a declaração publicada de Allchin como um comentário à GPL para, em seguida, argumentar que a GPL está de acordo com o american way e baseada nos valores daqueles que lutaram pela independência dos EUA. Defender a GPL seria um acto de luta pela liberdade. E esta seria o cerne dos valores e dos ideais do movimento software livre.

    Na história mais recente dos Estados Unidos, a palavra “unamerican” lembra o House Committee on Un-American Activities (HUAC), comissão instaurada no parlamento norte-americano que se notabilizou pelas investigações de actividades e propaganda comunista entre o final dos anos 1940 e início de 1950. Foi por sua atuação nessa comissão que o senador Joseph McCarthy inspirou o nome McCarthismo, que é entendido como o período na história dos Estados Unidos marcado pela perseguição político-cultural, principalmente contra artistas, sob a alegação de ligações com o comunismo e com a União Soviética.

    «O Movimento Open Source, que foi lançado em 1998, tem o objectivo de desenvolver softwares poderosos e confiáveis e uma tecnologia avançada convidando o público a colaborar com o desenvolvimento do software. Muitos desenvolvedores que participam desse movimento usam a GNU GPL, e são bem-vindos a utilizá-la. Mas as ideias e a lógica da GPL não podem ser encontradas no Movimento Open Source. Elas derivam dos objectivos e valores mais profundos do Movimento de Software Livre.

    O Movimento de Software Livre foi fundado em 1984, mas a sua inspiração vem dos ideais de 1776: liberdade, comunidade e cooperação voluntária. Isto é o que leva à livre empresa, à liberdade de opinião e à liberdade de software. Assim como em “livre empresa” e “livre opinião”, o “livre” de “software livre” refere-se à liberdade, e não a preço; especificamente, isso quer dizer que uma pessoa tem a liberdade de estudar, mudar e redistribuir o software que utilizar. Essas liberdades permitem que os cidadãos se ajudem a si mesmos e uns aos outros, e dessa forma participem de uma comunidade. Isto estabelece um contraste com o software proprietário mais comum, que mantém os utilizadores indefesos e divididos: o funcionamento interno é secreto, e uma pessoa está proibida de compartilhar o programa com o seu vizinho. Um software poderoso e confiável e uma tecnologia avançada são subprodutos úteis da liberdade, mas a liberdade de ter uma comunidade é muito importante.»

    Vale a pena aqui retomar a noção de Político, empregue por Guimarães para discutir as observações de Stallman. Ao afirmar que o movimento software livre representa sim os valores do american way, Stallman rediscute e dará novo significado ao american way. Ao fazê-lo, procura significar a expressão como algo coerente com os princípios do software livre, enunciados na GPL, ao mesmo tempo em que trata o software proprietário como algo que mantém os seus “utilizadores indefesos e divididos”, resignificando, por oposição, também esse termo, como algo “não americano”.

    Mais adiante, no mesmo texto, Stallman prossegue o seu trabalho de resignificação do american way. Na sua argumentação em defesa do software livre e da GPL, ele procura explicar o sentido dos direitos e deveres estabelecidos pelo seu movimento e deixar claro o funcionamento da sua licença. Isso é tão importante quanto mostrar que esses princípios estão de acordo com o que é imaginado como “ser americano”:

    «Não pudemos estabelecer uma comunidade de liberdade na terra do software proprietário onde cada programa tem o seu senhor. Tivemos de construir uma nova terra no ciberespaço – o sistema operativo GNU de software livre, que começamos a escrever em 1984. Em 1991, quando o GNU estava quase terminado, o kernel Linux escrito por Linus Torvalds preencheu a última lacuna; em pouco tempo o sistema GNU/Linux livre estava disponível. Hoje, milhões de utilizadores utilizam o GNU/Linux e desfrutam dos benefícios de liberdade e comunidade.

    Por: RAFAEL EVANGELISTA *

    * Dissertação de mestrado, com o mesmo nome, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Campinas, Brasil. Adaptado para a norma portuguesa europeia.

     

    Outras Notícias

    · A memória do rato

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].