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    Arquivo: Edição de 15-04-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Mundo em que vivemos

    Os lugares e as pessoas de que falo nas minhas crónicas já não existem. Esse foi o mundo de ontem que ficou definitivamente e só na minha memória. À distância de algumas décadas, o que me causou boa impressão alindou-se, vestiu-se de magia e de ternura; o que me causou sofrimento ou desgosto perdeu esse carácter, já não dói quando a memória o traz de volta.

    Receio que as histórias por mim contadas tenham pouco interesse para os leitores de hoje. O que me leva a prosseguir são incentivos que vou recebendo daqui ou dali, talvez porque quem o diz teve experiências semelhantes às minhas. O êxodo rural, que se tem verificado no último meio século, apresenta índices avassaladores, pois que a população dedicada à agricultura diminuiu drasticamente por força da emigração e da democratização do ensino. Não será arriscado dizer que uma larga faixa da população urbana actual é de origem camponesa. Muitos dos meus alunos ainda vão, regularmente, passar férias na aldeia ou visitar familiares que ali têm casa e propriedades.

    Quem não foi criado no campo, dificilmente o compreende, porque ignora uma realidade que tão bem foi expressa por grandes escritores como Trindade Coelho, Júlio Dinis, Miguel Torga, Raul Brandão e tantos mais. Li esses autores na minha juventude e as suas narrativas emocionaram-me. Sempre que os revisito, volto a sentir as mesmas emoções. Acredito que isso não aconteça com pessoas nadas e criadas na cidade, que desconhecem a natureza dos que aram a terra, a semeiam, produzem, criam e colhem, a maneira como estes interagem no contexto em que vivem, as vicissitudes por que passam, o que pensam e sentem acerca de quem usufrui de um salário, enquanto eles têm apenas o que a terra lhes proporciona e os seus braços conseguem desentranhar-lhe, numa luta constante e desigual com o clima e os fenómenos por ele ocasionados. Esse relacionamento entre o homem e a terra era tão forte que, em nenhuma circunstância, se rompiam os laços que haviam entretecido, mesmo quando as circunstâncias da vida os obrigavam a migrar.

    Como pode o citadino de raiz entender a resposta que o tio Borgas deu a alguém que o interpelava por exigir que a mulher, além do trabalho doméstico, o acompanhasse a carregar o feno ou a chegar-lhe os molhos de cereal ao carro, quase se arrastando, tão visíveis eram as suas más condições de saúde, «das mulheres não se tira outra lã» ou que o tio João d’ à Ponte, homem de boa família, já entrado em anos, após o casamento com a Maria Delfina, mulher pouco exigente na escolha de parceiros, que gerou pelo menos seis filhos de pais diferentes, admitindo o mau passo que dera, «no fim da vida caduquei: casei com uma mulher, pobre sim, honrada não».

    Na minha infância, ainda havia moleiros que vinham pelas aldeias buscar centeio ou trigo que carregavam nas mulas, volvendo, dias depois, com a farinha moída e a maquia cobrada;havia amoladores que esmerilavam facas, tesouras e outros utensílios de aço, nas suas maquinetas portáteis e prosseguiam a peregrinação por aldeias vizinhas; passavam latoeiros, de vez em quando, e eram bem-vindos porque consertavam tachos e panelas e deitavam pingos de solda em vasilhas rotas, numa época em que o dinheiro era muito escasso; mais raramente, apareciam sombreireiros, solicitados a remendar o pano ou a compor varetas daqueles guarda-chuvas enormes e robustos que os homens penduravam na gola por trás das jaquetas, quando iam à cidade fazer as suas mercas ou “pagar a décima”, e que duravam uma vida; era inconfundível o toque das gaitinhas dos capadores que, deste modo, anunciavam a sua presença e eram muito solicitados para interromper ciclos reprodutivos indesejáveis principalmente nos suínos quando entravam na época da ceva; ah! e vinham os mendigos tal e qual como deles falavam Guerra Junqueiro, Miguel Torga e outros dos nossos grandes escritores: cabelo e barba de profetas, cobertos de farrapos e parasitas, pés enfiados nuns socos cambados. Pediam esmola «por alma de quem lá tem» e metiam tudo o que lhes davam no mesmo saco que traziam às costas, por vezes comiam uma malga de caldo, sentados num cepo de madeira à porta de quem os acolhia. Se as pessoas nada tinham que pudessem partilhar, aceitavam um «Deus o favoreça!», conformados; chegavam trupes de ciganos em carroças puxadas por burros ou mulas, cheias de tarecos, potes, cântaros, candeeiros, almotolias, mantas, cestas enormes de vime, que as mulheres levavam nos braços a fim de pedirem esmolas, porta a porta, e guardarem o que lhes davam e tudo aquilo a que podiam deitar a mão, além duma caterva de miúdos seminus, descalços, sujos e ranhosos. Logo que alguém anunciava a sua chegada, todos fechavam portas e janelas, capoeiras e currais, nada deixando ao alcance deles.

    Os aldeões viviam da agricultura e da criação: galinhas, coelhos, porcos, sobretudo. Alguns possuíam ovelhas ou cabras. Os porcos davam muita despesa, mas garantiam o conduto para as refeições familiares ao longo do ano, uma vez que deles tudo se aproveitava.

    De longe em longe, a partir da Primavera, aparecia o sardinheiro, morador numa povoação vizinha, que reforçava os seus magros proventos, fornecendo às famílias algum peixe: um quarteirão de sardinhas, dois ou três chicharros por uma determinada medida de batatas, centeio ou trigo. O sistema de troca facilitava o negócio, visto que poucos tinham dinheiro disponível, mas podiam dispor de alguns dos produtos da terra. Guiava um burro carregado com dois pares de cangalhas e, dentro delas, caixas de madeira com sardinha, chicharro, congro e capatão conservados em sal. Trazia também alforges para, na volta, carregar os tubérculos e o cereal.

    Certo dia, a caminho da primeira etapa do percurso, o homem cruzou com a cria dos Bernardos: duas juntas de vacas, três ou quatro vitelos de leite e uma burra em que se escarranchava um rapazola dos seus catorze ou quinze anos. O homem do peixe subia o caminho rumo à aldeia e o guardador descia-o em direcção ao lameiro, ali, à beira do rio. Sem que nenhum dos intervenientes previsse, o burro puxou a arreata com violência e desatou numa desaustinada correria em direcção à montada do rapaz que, num relance, viu o perigo que corria e atirou-se ao chão. Os dois homens tudo fizeram para afastar os animais, mutuamente atraídos, todavia não puderam evitar uma espécie de “estoiro da boiada, cada bicho a escapulir-se por onde podia, O jerico do sardinheiro não logrou os seus intentos, mas, nesse dia, “lá se foram as cangalhas” mais o negócio das sardinhas.

    Por: Nuno Afonso

     

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