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    Arquivo: Edição de 15-02-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    O João Alípio

    Família toda reunida à volta da lareira, refeição pronta a servir em cima do lançador, desce-se a mesa acoplada ao escano e a dona da casa estende a toalha de linho, que a ceia vai ser servida. As mulheres trazem pratos e copos esmaltados, garfos de ferro que são postos em frente dos comensais. A travessa é colocada no centro da mesa. Não falta a almotolia do azeite, a garrafinha de vinagre, o pão centeio, grande e arredondado, que vai sendo partido em pedaços ao gosto de cada um, e também a caneca do vinho de colheita sem o qual a comida não desce e não sobe o palpitar dos corações.

    De acordo com a lei das precedências, servem-se primeiro os mais velhos, a seguir filhos e netos. A dona da casa é sempre a última a tomar assento e é tão despachada a comer como a trabalhar porque, de repente, alguém pede água e ela vai, pressurosa, buscar o jarro para o servir; um garfo caiu e é preciso trocá-lo; assim que todos tiverem comido, levanta pratos, copos, talheres e traz a tigela do caldo que coroa a refeição. Sobremesa é palavra inusual, fruta ou doce só em dias de festa.

    Chega o momento de “benzer a mesa”, agradecer a Deus a dádiva de mais uma refeição, invocar todos os santos para que protejam presentes e ausentes contra “a peste e a guerra”, as doenças e todas as desgraças que possam atingir corpos e bens, para que abençoem os produtos que foram lançados à terra ou as colheitas que ainda estão por fazer, a pedir a sua intercessão pelos familiares que partiram e pelas Almas do Purgatório. É algo que pode tardar quinze minutos a meia hora, na voz arrastada de quem oferece e nas respostas mais ou menos distraídas dos que assistem. O pão é o símbolo do alimento e, como tal, permanece ali enquanto o ofertante não fizer o derradeiro sinal da cruz. Só então é recolhido, a toalha sacudida e dobrada. Ergue-se a mesa e, de novo, é presa ao escano.

    O meu avô, que não tive a ventura de conhecer, sentava--se no “canto do fumo”, assim chamado por ser o lugar para onde o vento, que entrava pelas frinchas da porta mesmo em frente, empurrava o fumo da lareira. Diziam-me que mantinha sempre os olhos abertos, porque, na sua opinião, o fumo entrava e saía sem lhe causar incómodo. Fiz a experiência algumas vezes e não fui capaz de aguentar aquela ácida impressão. Alguns afirmam que a tudo a gente se habitua, talvez fosse questão de muita prática ou de grande fé.

    O João Alípio era um dos meus primos mais velhos e veio preencher a vaga de ternura deixada pelo tio mais novo, então já um adolescente espigadote. Agora era ele quem se acolhia entre as pernas do avô, sentado numa banquinha à sua medida e sorvendo, deleitado, o “fundinho” do seu caldo, hábito generalizado nos lares aldeões desse tempo, embora nada higiénico. Sobre a malga da sopa, era costume desfazer-se um bocado de miolo do centeio que, no fim, misturado com a batata e os legumes desfeitos, lhe conferiam um gosto especial. Os avós abdicavam desse prazer em favor dos netos, costume ingénuo que os defensores da higiene alimentar, com razão, haviam de censurar.

    Certa ocasião, o João Alípio teimou em comer na companhia “dos grandes”. Quem pôs a mesa, fez mal a conta dos garfos e, como todos já “tinham a foice picada”, esqueceram-se de reparar no petiz que permanecia quieto como um homem. Levavam à boca a penúltima garfada quando lhe ouviram dizer:

    – Se Deus quiser, hoje não como.

    – Porquê, filho? –, perguntou-lhe uma das tias, a lançar um olho indagador à travessa e outro ao prato do miúdo não fosse terem-se esquecido de o servir.

    – Porque não tenho garfo! –, declarou ele num tom peremptório entre o esclarecimento e a censura.

    Doutra feita, durante um daqueles longos serões de Inverno em torno da lareira, confrontavam-se opiniões sobre o que mais receavam do frio inclemente que, nas primeiras décadas do século passado, fustigava sem dó nem piedade as gentes daquelas terras do Nordeste. Uns diziam não querer que lhes arrefecessem as mãos que não lhes deixavam segurar com firmeza a rabiça do arado ou o cabo das ganchas; outros lamentavam--se que os pés gelados lhes tolhiam os movimentos ambulatórios; outros ainda argumentavam que o frio nas orelhas, por andarem mais expostas, chegava a produzir frieiras que coçavam e sangravam frequentemente. Todos foram dando parecer até que o João Alípio entendeu que tinha direito a pronunciar-se e saiu-se com esta:

    – Pois eu, só não quero que me arrefeça o céu-da-boca.

    Risota geral, pois ninguém sabia onde o pequenito fora buscar tal informação ou se aquilo era uma ideia dele, o que lhes pareceu genial.

    O João Alípio, conquanto inteligente, não veio a revelar-se sobredotado o que, certamente, não teria escapado à mãe, professora. Após a instrução primária, por ali se quedou, ajudando o pai no cultivo das terras. E porque estas não garantiam o futuro que ambicionava, emigrou para o Brasil. Encontrou emprego na Brahma, a maior cervejeira do país, e ali se manteve durante nove anos. Como as chamadas Leis Trabalhistas impediam os patrões de despedirem os empregados quando completassem dez anos de trabalho, ao João Alípio mandaram-no embora pouco depois de completar nove anos de bom serviço, recurso óbvio de que os empresários se valiam na defesa do que consideravam os seus interesses. A indemnização recebida não dava para grande coisa, mas podia ter constituído o pecúlio básico para iniciar um negócio próprio, contraindo ainda empréstimo a juros, junto de patrícios mais abonados, na importância necessária para financiar um qualquer projecto. Assim procederam inúmeros portugueses que, anos depois, construíram fortunas. Não teve coragem de arriscar e passou a viver de biscates ocasionais. Há muito que ele e a família viviam com uns cunhados em casinha humilde para os lados da Gávea e assim continuaram.

    É sabido que as más notícias correm depressa. Na aldeia natal, o insucesso do conterrâneo tornou-se tema de conversa nas horas de ócio. O Tanguelho, homem de língua solta, não esteve com mais aquelas:

    – Bô! Eu já sabia. Ele é um mandrângoras c'mò pai.

    Todos aceitavam que o tio João nunca fora muito dedicado ao trabalho, mas o comentário do Tanguelho era abusivo e não colheu aceitação geral, houve até quem tivesse dado réplica no mesmo tom:

    – Cala-te lá! Não tem tido sorte, é o que é.

    Se alguma vez a família do João Alípio não pôde comer o feijão com arroz quotidiano não foi, seguramente, por falta de garfo, mas de algo bem mais importante, daquilo que, além de melões, compra tudo o que é essencial a uma vida digna. Os filhos estudaram e os dois mais velhos cedo encontraram trabalho na companhia estadual de transportes do Rio de Janeiro, contribuindo assim para a melhoria do orçamento familiar.

    O que ele mais receava que lhe arrefecesse veio a acontecer mais cedo do que desejaria, numa altura em que a vida parecia sorrir-lhe.

    Por: Nuno Afonso

     

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