AVE JOVEM
das artes e das letras
Parece que o tempo se fecha sobre nós, como se fossem multidões a engolir corpos parados. E tudo parece tão parado que nem parece tempo, e tudo parece tão só que não parece nada que as horas passam por entre suspiros que cortam o ponteiro dos segundos. Parece tudo tão gritante, que o meu corpo parece gritar, sem as cordas vocais se mexerem. O agudo dos gritos parte o vidro do relógio, e o corpo bate contra o vazio, contra algo que não sabe onde anda. Parece que o tempo se fecha sobre nós, e eu fecho-me sobre mim, na esperança de não o ver passar. Fico parada e estendida no chão, vê-lo passar devagar, lançando os seus olhos de maldição… ele nunca vai parar e dizer que parou. Vamos ficar sempre nós parados e estendidos no chão, mais um vez e para sempre. Apetece-me gritar e ser o tempo. E eu nunca deixaria o tempo passar… iria deixar sempre o tempo na idade da inocência e do amor. SOFIA NUNES
Sinto um abismo entre nós e os nossos lugares. Vejo os nossos corpos invisíveis deixar pegadas sobre a areia húmida desta praia deserta onde o mar quase não tem ondas, como as nossas almas. O sol brilha-nos as vontades e faz de nós esses seres sem lugar nem espécie. Vivendo o castigo de estar longe do mundo, mas sabendo que ele existe.
Meu amor, diz-me quantas flores continuam a viver no teu jardim e quantas foram comidas pelo tempo. Diz-me quais as memórias que brotam lágrimas nos teus olhos e aquelas que te deixam um sorriso no rosto. E diz--me em quais delas eu faço parte.
As minhas memórias são melodias ruidosas que rasgam os tímpanos e fazem as crianças encolher-se nos cantos das salas. E que me perseguem como gritos de cadáveres de dedos ossudos dirigidos a mim, que esvoaçam e fazem festas nos meus cabelos. E eu sentada, deixo eles rirem comigo e chorar comigo e vejo os mortos como eles eram vivos. Oh, onde andam vocês.
E nesta areia ficam as nossas pegadas até o tempo em que deixam de ficar. E nos teus olhos ficam as tuas mágoas e nas minhas mãos ficam os retratos delas. E por baixo das nossas pegadas ficaram outras apagadas por nós e por baixo dessas outras e mais outras. E toda esta areia guarda um emaranhado de pegadas e de almas presas para sempre e as covinhas cobertas por água e por vezes submersas, são as almas que tentam subir e sair de encontro ao céu e libertar-se para sempre do peso dos outros e dos não outros. Dos visíveis e dos invisíveis como nós. DANIELA RAMALHO
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