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    Arquivo: Edição de 15-05-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    Vinheta JOSÉ ABRANTES
    Vinheta JOSÉ ABRANTES

    Estrelinha por essa vida demandava...

    Em formato de comic book, mas com umas generosas 120 páginas no seu primeiro número, datado de Outubro de 2006, a revista “BD Voyeur” é mais uma estrela da constelação brilhante que é a pedranocharco, e apresenta-se como de «banda desenhada portuguesa para adultos». Trata-se de uma revista de banda desenhada erótica (toda a gente sabe o que é que quer dizer o eufemismo “para adultos”), mas sem nunca se aproximar do registo porno da também de recente lançamento “Carne Viva”, uma outra revista portuguesa de BD, mas de contornos bastante mais ousados.

    Nesta “BD Voyeur” o erotismo é o tema dominante quer nas pranchas de banda desenhada nela publicadas, quer nos estudos sobre o género, que fazem da revista um caderno com referências e matérias diversas e informadas. Um pezinho fora da Banda desenhada são os textos de reportagem a propósito do Salão Erótico de Lisboa que, de qualquer modo, ocupam um lugar secundário na publicação.

    Nesta revista podemos encontrar além de diversas recensões, um texto de Nuno Franco sobre a obra de Georges Pichard – quadrinista desaparecido em 2003, autor de “Paulette”, entre outras personagens –, uma homenagem do editor da “BD Voyeur” J. Machado-Dias ao “eros”, de Geraldes Lino – «um fanzine de há 20 anos» (com republicação integral do n.º 7 – são 22 generosas páginas a não esquecer da Banda Desenhada portuguesa, fanzine que destacava neste número o quadrinista Diferr, que era aí também entrevistado por Geraldes Lino), a tal reportagem que já referimos, sobre o II Salão Erótico de Lisboa (com destaque para o texto de Luís Graça “’Produto’ livro anda perdido no meio de tanto sexo à solta” e, evidentemente as pranchas de vários autores que, por comodidade nossa e sem preocupações de exaustão, vamos agora referir de trás para a frente: uma história curta, de humor, de Pedro Alves, uma – mais longa – história de Janus, um autor cuja técnica surpreendente – a assemelhar-se a risco de esferográfica, mas preenchendo todo o espaço da vinheta – que não tem tido a divulgação que merece e cuja inclusão na “BD Voyeur se saúda, “Ride”, de Pepedelrey, que assina também duas ilustrações, “A Corrente Escondida”, uma montagem de Machado sobre fotos de Luís graça captadas no Salão Erótico. Machado é também autor de outra peça. E além destes, “A Olhar”, história com argumento de Daniel Ibañez e desenho de Maria João Careto, que assina ainda várias ilustrações, “Black”, de Álvaro, uma obra cujo estilo não tem nada a ver com o “Manual de Posições para Labregos”, “Lições de Vida”, de Ronin, uma história de Horácio, também publicada na “Carne Viva” e, aquela que propositadamente deixámos para o fim e que nos chamou particularmente a atenção, a obra que abre a revista, “Estrelinha”, de José Abrantes. Quer pelo alto contraste a preto e branco que a caracteriza, com grandes superfícies de negro à semelhança das técnicas de xilogravura, quer pelo desenho, que sendo estilizado e redondo para uma das personagens – Estrelinha – é, por sua vez, picaresco e crumbiano na segunda personagem – Folapão Sapata (que doutra maneira, por vezes se designa) – e, muito muito pelo texto, espantoso de engenho, em que se combinam uma poesia de evocação quase infantil e silvestre, com o erotismo. Por exemplo: abrindo a peça: «Estrelinha, tão bela e falopinha, por esse hélio dia alegre e contentinha/ O sol raiante a ela sorria, e mesmo a relvinha acariciava os seus pés nus com dedinhos/ Mas ora eis que surge o gulo Folapão Sapata, que a cobiça e logo ali enseja raptá-la...».

    É com mão de mestre que José Abrantes gere o espaço de cada prancha, a que vai imprimindo uma dinâmica cadência sobre eixos verticais ou horizontais que vai traçando, sempre sabiamente administrando o preto e o branco que tem como ambientes.

    Entre o conto de cordel, a farsa picaresca e teatral, o texto vai decorrendo mavioso e inegenuamente engenhoso a ponto de deixar entrar por uma ou outra fresta que se abre, sempre natural, uma piscadela de olho, uma zombaria, mesmo uma sugestão de vernaculidade.

    Abrantes estabelece ainda na própria peça o diálogo com os seus leitores, ajudando a criar um efeito pirandelliano que se junta a toda a carga sensual dos desenhos da donzela desnuda (embora temperados pelo grotesco e disforme do corpo do sátiro).

    O efeito de falsa de ingenuidade é ainda sublinhado pelo final cor-de-rosa, em que o velho se vê obrigado, pelas palavras da donzela/vénus, a fugir dela, deixando-a em paz com o seu cósmico amante: «Assustado corre dali, fugindo atordoado e confundido, enquanto de novo Estrelinha sente o solar amante estender-lhe os quentes braços.../... Sapata, esse, corre até mais dele não sabermos.../ Diz-se que se perdeu na natureza, outros ainda nos informam que foi esta que o perdeu.../ Estrelinha, tão folapinha, por essa vida demandava, alegre e doidinha».

    Peça de equilíbrios subtis, “Estrelinha” insinua-se, surpreendente, e consegue atravessar para o outro lado.

    Por: LC

     

     

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