“Helldorado”
Lançado em 2006 pela prestigiada editora Casterman, “Helldorado”, uma obra com cenário de Jean David Morvan e Miroslav Dragan e desenho (e cores) de Ignacio Noé, aborda a temática da expansão castelhana na América do Sul e, em contraposição, a vida das comunidades ameríndias que lhes foram então submetidas.
A demanda do ouro por parte dos aventureiros conquistadores espanhóis (tantas vezes à custa do sangue de aldeias inteiras dizimadas), ora através da chacina pura e simples, ora através das epidemias trazidas da Europa, serve de enredo para esta estória que, longe de adoptar uma perspectiva maniqueísta anti-espanhola, ou anti-colonizadores, procura também penetrar na cultura dos poderosos aztecas, revelando-os tal como eram, e apresentando aqui também as suas cerimónias sacrificiais, as suas instituições de poder, o seu quotidiano.
Título feliz e mais do que revelador do projecto dos autores, “Helldorado” revela-se também interessante, para além das subtilezas do argumento, pelo grafismo de Ignacio Noé, que se revela um autor capaz e em progressão.
As cenas iniciais de “Helldorado – Santa Maladria” reflectem o pacato viver de uma aldeia índia aonde, de repente, chegam os espanhóis, que então procedem a um horrendo massacre. Os índios são obrigados a escavar uma vala funda e aí, são chacinados pelos tiros dos arcabuzes espanhóis.
A história desta chacina ocupa as sete primeiras pranchas da obra, sem o recurso a um único balão, ou sequer a uma única palavra. As ilustrações falam.
E não há diálogo possível entre estas duas civilizações.
Só depois surgem os protagonistas de “Helldorado”, dois jovens, mais ou menos desajeitados, uma espécie de anti-heróis que, mais do que viverem ou provocarem os factos, vão sendo devorados por eles.
Meio bêbados, meio ladrões, Hutatsu e Datchino chegam ao local da tragédia, onde comem e bebem do que resta nas cabanas abandonadas, fazem desatinadas diabruras, toldados pelo álcool e, por fim adormecem. É assim que os encontram uma coluna de syyanas que lhes reconhece a pronúncia do norte e os sinaliza como forasteiros, quando pretendem fazer-se passar por sobreviventes do massacre.
Descobertos, abrem caminho à força e tentam fugir. Sem sucesso. Presos, são levados para uma grande cidade azteca, onde serão julgados, juntamente com outros.
Alguns dos réus serão executados por lanceramento, outros sacrificados aos deuses, outros ainda – será o caso dos pobres diabos destes heróis de meia tigela, empregues no grande hospital onde se tratam os doentes que a epidemia – provavelmente a peste ou o tifo – apanhou e para a qual não há cura. Ou se morre, ou se lhe sobrevive. Mas não se sabe como...
É este o início da saga de “Helldorado”, em que, ao mesmo tempo se sucedem os enforcamentos, no lado espanhol, sobre aqueles que não demonstraram a bravura que lhes era exigida no terreno de batalha – os desertores.
O argumento de “Helldorado – Santa Maladria” revela cuidado e artifício e é, só por si, aliciante bastante para ler a obra, que apesar de não estar ainda traduzida em Português, nos merece toda a atenção.
OS AUTORES
Ignacio Noé assina aqui uma das suas primeiras obras editadas em livro, mais precisamente a terceira, depois de “Illusions Coquines” (nas Éditions Vents d’Ouest) e de “Les Chroniques de Sillage” (nas Éditions Delcourt). Esta última obra contava já com argumento de Jean David Morvan (a que se juntavam Philippe Bouchut e outros).
Miroslav Dragan é também um jovem cenarista, tendo antes desta obra assinado apenas igualmente dois livros, o da estreia, “La Guilde – Astraban”, com Oscar Martín para as edições Casterman, e já com Jean David Morvan e Phiplippe Bouchut, “Sillage Hors-Série: Le Collectionneur”.
Já quanto a Jean David Morvan a história é outra, completamente diferente, pois a sua obra aparece espraiada por mais de setenta álbuns distribuídos por variadas editoras, como Carabas, Dargaud, Delcourt, Dupuis, Glénat, Humanoïdes Associés, Soleil, Vents d’Ouest, Zenda, Âge de Pierre, a que se soma agora a Casterman.
No primeiro volume de “Helldorado” (Santa Maladria), podemos pois encontrar, quanto à autoria, um apadrinhamento e, neste caso, um apadrinhamento feliz.
A HISTÓRIA
Os aztecas são aqui chamados de syyanas e mesmo os homens de Hernán Cortés não são apresentados como súbditos da Coroa espanhola, embora ostentem nomes como “Navarro” e seja bem referida a sua origem europeia. Mas uma vez o desenho de Noé ajuda a dizer o que não é dito através de meras palavras.
A “fabulosa” conquista espanhola, desde a chegada de Hernán Cortés até à queda de Tenochtitlan, capital do Império Azteca de Montezuma, é só por si, motivo sobejamente interessante, do ponto de vista dramático, para tema de qualquer obra de arte.
Isso mesmo compreenderam os autores, que destacaram, nestes factos, também o papel dos vencidos, só muito recentemente objecto de valorização fora dos circuitos anti--coloniais e anti-imperialistas.
E, todavia, mesmo no centro do Império espanhol, cresceram as denúncias das atrocidades, como bem o mostraram testemunhos como o de San Cristobal de las Casas.
As condições que permitiram a conquista são, aliás, muito bem expostas por Juan Batista González, a dado passo da sua obra “O Jogo de Estratégia na Conquista do México”: «Tenochtitlan (...) era uma cidade que pendia para uma defensiva estática: rodeada pelo fosso da laguna, edificada sobre um penedo e unida a terra firme por calços cuja interrupção estava prevista, tudo nela fazia frente a um hipotético assédio. O militarismo religioso como solução para um défice de terreno cultivável foi o que converteu a comunidade mexica numa potência expansiva. Mas a sua situação a respeito das populações ao seu redor baseava-se apenas na hegemonia ou predomínio. “O Estado imperial azteca, se bem que dominador, não é essencialmente administrador. Na sua mecânica predomina mais a tributação de produtos e homens que a unificação administrativa” (Mario Hernández Sánchez-Barba, Historia de América, Editorial Alhambra, Madrid, 1980). A imposição brutal do seu deus bélico – Huitzilopotchli – aos seus vizinhos obrigava estes a aceitar uma opressão que, como tal, era por eles indesejada».
A obra de Morvan/Dragan/Noé não é, nem pretende ser uma espécie de reconstituição histórica do que quer que seja, mas colocar-nos-á sempre, pelas abundantes referências que a povoam, diante de uma necessidade de a enquadrar numa determinada conjuntura temporal e factual a que, por mais fantasiosa e livre que pretenda ser, não poderá, evidentemente escapar.
Numa obra com contornos assim, o enredo acabará sempre por se apreciar numa dupla direcção: a da inventiva e encadeamento narrativo e a da fidelidade, se não aos factos estritamente históricos, pelo menos à sua ambiência determinante e essencial.
Por:
LC
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