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    Arquivo: Edição de 28-02-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Flores emurchecidas

    Encantador este nosso hábito de colorir os factos, de lhes emprestar uma conotação emocionante nas expressões com que as designamos. "Revolução dos Cravos": não é delicioso o rótulo que apomos aos acontecimentos de 25 de Abril de 1974 e ao processo que deles resultou? Foi, talvez, o mais bem sucedido produto do nosso "marketing", tornámo--nos através dele irmãos de todos os idealistas sociais espalhados pelo mundo, vieram abraçar-nos e comungar dos nossos propósitos as grandes figuras da intelectualidade dessa época. Quem não se lembra de Jean Paul Sartre subindo para um tanque, de Chico Buarque de Hollanda cantando o seu Fado Tropical?

    A verdade é que os cravos feneceram e a dita revolução, se o foi nos intentos dos que, generosamente, tudo arriscaram para que dela resultasse uma sociedade mais equitativa e solidária, expirou, ainda no berço, por erros próprios e ambições alheias. Foi exaltante enquanto durou, terrivelmente enganadora para quem aguardou pelos resultados com que todos sonhámos, em especial os deserdados da fortuna, os românticos de ontem e de hoje e todos os que, de algum modo, puseram o interesse colectivo acima dos seus mesquinhos propósitos. Poderia cada um de nós ter feito mais para que o desfecho fosse diferente? Provavelmente, sim. Uns terão pecado por inexperiência ou ingenuidade, outros por egoísmo, alguns por desânimo. Terá havido os que fizeram o cúmulo. Quem pode saber as motivações de cada um?

    No plano individual, confesso ter acrescentado à minha experiência de vida um capital de extraordinário valor. A Universidade era, antes dos factos conhecidos, palco de alguma efervescência por mor dos "gorilas" que a povoavam, vigiando todos os passos que dávamos e anotando indícios de oposição ao regime. Alguns ali apareceram como funcionários, acompanhavam-nos através dos corredores, sentavam-se nos bancos em que depúnhamos os nossos materiais de estudo enquanto conversávamos animadamente longe deles. Estavam marcados, mantínhamo-los à distância, impossível distinguir os "bons" dos "maus", então todos eram contemplados com o mesmo desdém. Valiam-nos o senhor Madureira, animador do átrio principal, perdido por um copito, que íamos financiando em troca das inúmeras atenções que nos dispensava, e outro cujo nome não consegui achar por mais voltas que desse à memória, bom homem também, que vivia com a mãe idosa e doente numa casinha antiga de baixa renda, mesmo assim demasiado onerosa para tão débeis posses. Por obra e graça daqueles "bufos", a Paula Martinho, nossa colega, fora presa pela Pide e dizia-se que outros teriam o mesmo destino. Compreende-se, pois, a antipatia que tais figuras nos inspiravam. Na manhã de 25 de Abril "foi um ar que lhes deu".

    Foram intensos os meses seguintes. Não houve mais aulas, mas todos os dias comparecíamos nas instalações da Faculdade para sabermos as novidades que chegavam em catadupa e participarmos nas acções anunciadas. Respirava-se liberdade, a indefinição política era palpável, os boatos fervilhavam, algumas notáveis personalidades, antes proscritas, regressavam à Faculdade para ocupar os lugares do antigo director e de professores que "de motu próprio" se ausentaram à espera que a situação ficasse clarificada. Mereceu recepção excepcional o Professor Óscar Lopes, que veio ocupar o cargo de director, nomeado pelo Ministério da Educação em resultado de pedidos e manifestações de professores e estudantes e teve a recebê-lo toda a população académica bem como um sem-número de admiradores e amigos. Constituíram-se comissões de alunos, havia convocatórias para discutir assuntos com ou sem conhecimento das matérias em causa, organizaram-se manifestações de apoio e de repúdio, formaram-se "tribunais revolucionários", sem nenhuma legitimidade, que tomavam assento no Salão Nobre da Faculdade onde não cabia uma agulha, para julgar professores supostamente responsáveis por prisões, exclusão de alunos, castigos aplicados a mestres e discípulos, surgiam conferencistas até então desconhecidos que explanavam os seus projectos para a nova sociedade que todos ambicionávamos. Na maior parte dos casos eram ideias inconsistentes, um tanto desconexas, por falta de amadurecida reflexão.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Certa vez, apareceram duas ou três pessoas ligadas ao teatro ladeadas por alguns dos nossos professores. Falaram do que há muito se fazia noutros países e dos seus planos para a renovação e fomento do teatro em Portugal. Lembrei-lhes que, em muitas aldeias e vilas do interior, se realizavam, de quando em quando, espectáculos teatrais baseados em histórias da vida dessas comunidades, em lendas antigas, em episódios históricos, preparados e encenados sem qualquer apoio exterior, mas entusiasticamente recebidos pelas populações locais. Pelos sacrifícios que tais espectáculos implicavam, não podiam ter continuidade, deixando no espírito das pessoas um grande vazio que a saudade tentou preencher.

    – Qual a opinião dos senhores acerca destas manifestações genuínas e como pensam que deveriam ser incentivadas e apoiadas pelo poder central?

    Notei-lhes o desconforto, decerto nunca tinham pensado nesses públicos simplórios e na sua apetência cultural, julgavam-nos incapazes de irem além da enxada e do arado. "Enrolaram a manta", desconversaram, muito senhores da sua grande importância. A dúvida permaneceu.

    O ano lectivo de 1974/ /1975 trouxe muitas inovações. Notava-se que havia um manifesto desejo de modernizar, alterando currículo e procedimentos. Muitas dessas novidades redundaram em problemas acrescidos para os formandos. As aulas eram, agora, mais participadas, misturava-se a matéria científica com intervenções marcadas por novas ideologias e ingénuas concepções de vida. Numa cadeira de Literatura Francesa incumbiram-nos de fazer um trabalho sobre os Poemas de Mao Zedong (Mao Tsé Tung). Ainda conservo a obra e o trabalho que apresentámos. Até hoje não entendi que relação poderia existir entre a Literatura Francesa e a obra poética de Mao. O mesmo professor, certa vez, lançou o repto:

    – O amor é um sentimento burguês.

    Como o leitor imagina, a provocação teve resposta adequada e o ambiente degenerou em animosidade e ressentimentos, felizmente passageiros.

    Naquela areia movediça, quantos castelos se construíram! Deles ficou pouco mais do que a recordação.

    Por: Nuno Afonso

     

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