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    Arquivo: Edição de 15-02-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Terá valido a pena?

    A menos de cinquenta metros de casa dei por mim envolto numa densa nuvem de fumo. Senti, nos olhos, uma ardência enorme que me tolheu a visão. Rosto, antebraços e mãos foram igualmente invadidos por um estranho formigueiro. Tive a angustiosa sensação de que ia morrer por asfixia. Ouvia gritos e insultos dirigidos aos agressores, ainda desconhecidos, ordens de comando e correrias um pouco à toa, pois ninguém conseguia distinguir fosse o que fosse naquele mar de coalho, mas o instinto de sobrevivência obrigou-me a sair dali.

    Encontrava-me frente ao portão do Colégio público D. Pedro II, dependência do Engenho Novo. Provavelmente a acção visaria os alunos daquele estabelecimento de ensino, visto que os estudantes costumam ser os primeiros a dar sinal de revolta face aos abusos do poder e, por esse facto, tornam-se alvos privilegiados da repressão. Que teria ocorrido de tão grave a exigir o lançamento de gás lacrimogéneo sobre os jovens, rapazes e moças, que todos os dias via passar em grupos, eles palradores e brincalhões, elas mais discretas cheias de risinhos, rua fora a caminho das respectivas residências?

    Ali no meio daquela pasta leitosa tentava desesperadamente esconder-me dos perseguidores, porque regressava da Universidade sobraçando cadernos e apostilas e poderia ser confundido com os alunos do colégio. É verdade que não usava uniforme, obrigatório para os secundaristas, mas, tratando-se de forças militarizadas, não poderia contar com o discernimento ou complacência dos seus agentes. O espaço que tinha de vencer, ainda que reduzido, incluía um cruzamento onde a névoa se esgarçava, deixando ver quem se atrevesse a transpô-lo pelo lado do colégio. Os nossos perseguidores avançavam em turquês, um cordão que descia do lado de Vila Isabel e outro que procedia do Meyer, tornavam praticamente impossível a fuga.

    Como fazia diariamente, tinha-me apeado antes de o ónibus, que descia a Rua Barão do Bom Retiro, derivar à esquerda para a Dona Romana, e segui rente ao muro que protegia o “campus” do colégio. Naquelas circunstâncias pensei que teria mais hipóteses se tentasse esgueirar--me pelo outro lado da rua e, em caso de sucesso, regressar quando o ambiente estivesse mais desanuviado. Atravessei na esperança de achar refúgio no armarinho de “seu” Antenor ou na papelaria de D.ª Lucimar, talvez até no bar do Artur, nosso concorrente. Azar dos azares, à porta de cada um desses estabelecimentos havia uniformes militares a impedir o acesso. O Artur tinha mesmo fechado as portas. Só a improvável distracção dum agente ou a bondade de algum ousado morador poderiam ajudar-me. Mas, porque conhecia bem os acidentes da rua e cada um dos seus habitantes, teimei em encontrar uma saída. Consegui infiltrar-me no quintal de “seu” Josias, aproveitando o recuo do seu muro em relação ao do vizinho, espaço oculto pelo largo tronco de um velho ipê. A luxuriante vegetação do quintal favoreceu o meu intento. Atrás passava uma ruela que conduzia ao Jardim Zoológico, outrora propriedade do Barão de Mauá, inventor do célebre Jogo do Bicho.

    O GOLPE MILITAR

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Deste modo consegui escapar às garras da polícia mas não aos problemas causados pelo gás lacrimogéneo. Num fontanário lavei demoradamente o rosto e os braços até que me senti em boas condições de caminhar. Circundei toda a área por ruas que até então desconhecia e apercebi-me de que, aos poucos, o ruído ia diminuindo. Cautelosamente acerquei-me e cheguei a casa horas depois do que era meu costume para tranquilidade do meu pai, que se afligia com a minha demora.

    Soube, então, que tinha acontecido um “putsch” militar chefiado por um general desconhecido, mas cujo nome tinha ressonâncias lusas: Castelo Branco. O Presidente João Goulart tinha sido deposto e partira para o exílio no Uruguai. Ao golpe tinham-se associado os governadores do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, respectivamente Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que reclamaram a sua quota--parte na intentona. A Junta Militar, que doravante governaria o país, instaurou um regime repressivo a que não escaparam políticos e figuras proeminentes ligadas à governação legitimamente eleita. Eu começara a frequentar o curso de Ciências Sociais e Políticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e, nos quatro anos que se seguiram, só ocasionalmente participei em actos de oposição ao governo. A ditadura militar haveria de permanecer à frente dos destinos do Brasil durante mais de duas décadas. Estávamos em 1964, 31 de Março.

    Dez anos mais tarde fui testemunha de novo pronunciamento militar, desta vez em Portugal. Na manhã de 25 de Abril de 1974 dirigi-me, como era meu hábito, para a Faculdade de Letras. A rotina havia de ser quebrada a meio da segunda aula. Alguém veio trazer uma mensagem ao Dr. Arnaldo Saraiva que de pronto se ausentou. Nesse ínterim começaram a circular notícias sobre uma possível sublevação militar. O Albino, que chegara mais tarde e percorrera a pé o trajecto desde a Rua Alexandre Herculano até ao edifício onde nos encontrávamos em frente ao Hospital de Santo António, deu conta de que o centro do Porto estava a ser percorrido por tanques militares. Logo outros foram actualizando a informação. A ausência prolongada do professor e a curiosidade natural que se apoderou de todos nós colocaram ponto final nas actividades lectivas desse ano. Fomos saindo e formando grupos no átrio da Faculdade numa ânsia festiva que a custo podíamos controlar.

    Os meses seguintes foram alucinantes. Parecia que uma estranha febre dominava toda a população. Como se os diques se houvessem rompido, uma cheia de entusiasmo invadia os espíritos e soltava línguas e instintos. Ora participávamos em girândolas discursivas, ora assistíamos impotentes a tragicómicas RGAs (leia-se Reuniões Gerais de Alunos) em que se “julgavam” velhos professores, que ainda há pouco eram reverenciados, por entre vitupérios, grosserias e os mais vis achincalhamentos. Época de exaltação e vilania, de projectos desmedidos e niilismo absoluto, de idealismo contagiante e frustrações arrasadoras, de tombo equivalente ao tamanho da montada. Sonhámos um mundo novo, mais igualitário e justo, mas acordámos frustrados e deprimidos.

    Vivi esses dois momentos importantes para a História do Brasil e de Portugal. O conceito sociológico de Revolução não se aplica a nenhum deles, infelizmente para os respectivos povos. Revolução acontece quando a força que gera e impulsiona o movimento sócio-político determina a transferência de poder duma classe para outra. A Revolução Francesa levou ao poder a burguesia em detrimento da nobreza e do alto clero; a Revolução Russa teve como objectivo a ascensão do proletariado e de outros estratos mais desfavorecidos da população. O Golpe Militar de 1964 no Brasil foi orquestrado e dirigido pela classe dominante que assim impediu as camadas trabalhadoras de ascenderem ao poder como sonhavam os verdadeiros revolucionários brasileiros; no caso português poderia ter sido, mas o processo foi abortado nas condições de todos conhecidas.

    Terá valido a pena o sonho que alimentámos e pelo qual tantos lutaram em muitos casos com sacrifício da própria vida? Se levarmos a sério Fernando Pessoa: «Tudo vale a pena se a alma não é pequena».

    Por: Nuno Afonso

     

     

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