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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-01-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Memórias póstumas de um negrilho

    Dizem os humanos que são os únicos seres que possuem os dons de pensar, de sentir e de fazer uso da linguagem, e decidem que os restantes não têm alma, conclusão apressada e excessiva. Esquecem-se de que temos vida como eles e, quanto à linguagem, talvez nunca se tenham esforçado verdadeiramente para comprovar a inexistência dela. Alguns admitem que podemos ter algum tipo de linguagem, mas que não é articulada e criativa, limitando-se cada espécie a reproduzir o material herdado, e a transmiti-lo, sem nada lhe acrescentar, às novas gerações. Cada espécie tem comportamentos e organização interna muito próprias e complexas como as abelhas, as formigas e outras para referir só as mais conhecidas do homem. Munidos dos seus valores intelectuais, os cientistas têm-se dedicado ao estudo dessas comunidades e não foram muito além disso. É que eles ignoram outros instrumentos de análise compreensíveis para toda a humanidade. Tais instrumentos não permitem a demonstração de como os objectos do seu estudo vivem e agem, numa lógica diferente da sua. As conclusões não podem ser outras, porque o seu quadro de referências só alcança o que é tangível. Os que mais se aproximam da verdade são os poetas que jamais são levados a sério.

    O mesmo não se passa em relação aos seus ancestrais que viveram em épocas remotas e dos quais ainda não possuem toda a informação que desejariam. Pouco a pouco, no entanto, vão descobrindo documentos dos mais diversos tipos que lhes fornecem pistas e possibilitam conclusões unanimemente aceites. Vejam-se, por exemplo, as formas de fixação da linguagem de certas civilizações antigas. Com extremo afinco têm conseguido penetrar os segredos dos seus hábitos sociais, das suas realizações materiais e, sobretudo, das suas crenças, valores e maneiras de ver a realidade. Sabe-se como foi possível desvendar muitos dos mistérios que alguns dos seus documentos, em pedra e noutros suportes materiais como a madeira ou as fibras vegetais duma nossa irmã a que os homens chamaram papiro, continham. Perpetuou-se o extraordinário feito da descoberta da Pedra de Roseta que um jovem francês sobredotado investigou e descodificou, permitindo enormes avanços acerca dessa notável civilização. Outras pesquisas conduziram à genealogia das principais línguas existentes no mundo, embora ainda não se tenha conseguido reconstituir as que se julgam mais antigas.

    NÓS PENSAMOS

    E SENTIMOS

    TAL COMO VOCÊS

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    O leitor achará estranho que eu discorra desta forma sobre a vida humana, os comportamentos dos homens, a lógica do seu pensamento e revele conhecimentos que uma árvore não poderia ter. Mais uma vez trata-se da vossa lógica, não da nossa. Embora não creiam, nós vemos, ouvimos, sentimos e pensamos tal como vocês. Não temos órgãos da visão, da audição nem um cérebro à semelhança dos humanos, o que não impede que acedamos ao conhecimento, que processemos os nossos raciocínios e guardemos as nossas memórias. Os homens falam e nós ouvimos, outros elementos da nossa comum natureza como o vento trazem até nós todas as informações que o homem disponibiliza e outras que ele não domina. Deste modo acompanhamos a vossa vida e os vossos progressos.

    O homem intitula-se Rei da Criação e procede como tal. Utiliza-nos para vários fins e todos colaboramos com ele. Nós, os negrilhos, damos-lhe as nossas folhas para alimentação de alguns dos animais que o cercam: os quadrúpedes e os porcos. Fornecemos-lhe a sombra que o refresca nos dias de intenso calor e o protege da chuva quando esta o surpreende, indefeso, na vastidão do campo. Entre os nossos ramos se abrigou outrora de todos os perigos que o rodeavam, viessem eles da atmosfera ou de seres que não se lhe submetiam nem aceitavam a sua tutela. A nós recorreu para afeiçoar instrumentos indispensáveis à sua locomoção, ao seu trabalho e ao seu conforto: o bordão de caminhante, a roda que precedeu os meios de transporte contemporâneos, a acha que o aqueceu e em cinzas se desfez, o copo, a malga e a gamela, a barrica, a pipa e o tonel que serviram para se alimentarem e dessedentarem, a trave, o caibro, as ripas e as tábuas para erguer a casa que é seu abrigo e mesmo as que o vestem quando desce ao seio da Mãe-Terra ainda que para tanto nos tenha feito morrer.

    Um dia alguém derrubou um dos nossos irmãos e o seu tronco para ali ficou encostado a uma parede, aparentemente sem préstimo já que não havia precisão de fazer aixeda e rodas para carro de bois nem outra obra que o requeresse. Decorreram anos e, quando menos se esperava, dele começaram a nascer cogumelos como se, de novo, tivesse florescido. A dona da casa reparou no fenómeno e alegrou-se, porque essa espécie de fungos é comestível e tem um sabor muito agradável. Logo que eles cresceram e atingiram quantidade apreciável, foram à mesa daquela numerosa família. No futuro muitas vezes a operação se repetiu. As crianças regavam diariamente aquele corpo inerte e, ora uma, ora outra, com frequência, traziam a novidade:

    – Mãe, há mais repolgas a nascer!

    – Graças a Deus! – respondia ela, grata por aquela bênção inesperada que vinha enriquecer a dieta familiar.

    Não sei dizer por quanto tempo se prolongou a dádiva, mas tudo tem um fim, não é verdade?

    Também para nós, para mim, o final aproxima-se. Estou ferido de morte. Uma pandemia atinge, desde há dois ou três anos, a minha espécie. A maior parte dos meus irmãos já morreu. Eu próprio sinto que a minha seiva circula com mais dificuldade, os meus ramos secaram, já não posso ajudar os homens como acontecia antes, mas gostaria que do meu corpo retirassem o melhor proveito.

    Por: Nuno Afonso

     

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