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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-01-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    O calvário de cada um

    Ergo-me diante do espelho e vejo aquele que julgo ser eu. A mancha equivale à que o meu corpo projectaria, semeada de pensos, equimoses recentes e cicatrizes de todo o tempo, umas menos perceptíveis, outras de extensão variável, em linha recta ou ligeiramente arqueadas, um diagrama de rugas, muitas, que o tempo e as emoções foram traçando, paulatinamente, sem que eu me desse conta. Há ilhéus de bonança inscritos nesse labirinto, sorrisos esboçados, olhares de múltiplas definições.

    Fecho os olhos, incrédulo: serei eu que estou ali reflectido? Suspendo a emoção e observo com a possível objectividade, como se não fora mais do que um caso de estudo, mapa que ostenta não apenas um corpo mas o meu ser físico e psíquico.

    Começo a distinguir cada um dos sinais inscritos nessa figura e, no meu cérebro, passam imagens de acontecimentos de sinais opostos a que não faltam as datas: as viagens de bonde, quando o dia já declinava, sentado nos joelhos do meu pai e os passeios pela sua mão à beira-mar, na praia de Copacabana enquanto de uma vitrola saíam as notas de uma canção romântica muito em voga “À noite à luz das estrelas/ cantam as águas do mar/ também canta a minha alma/à luz do teu meigo olhar”; o choque abrupto com um mundo tão diferente do que eu conhecia, a aldeia, os primos e outros companheiros de brincadeira, os adultos que me olhavam como se eu fosse uma ave rara, quando cheguei a Portugal em 1944; o envenenamento com as sementes das “figueiras do inferno” e a perda da consciência de mim, reconstituindo esse breve trecho da minha vida com informações de familiares e vizinhos à semelhança de um enxerto de tecido que foi destruído, e reposto tempo adiante; as festas em que as famílias se reuniam e eu podia conviver com o Virgílio, primo da mesma idade, nesses tenros anos; a primeira vez em que me separei dos meus pais e experimentei a solidão, o medo e uma melancolia que julguei não ter fim, em 1950, recém-chegado ao Seminário; a partida do meu pai, dois anos depois, para um Brasil de que, na altura, já não possuía memória viva e que assumiu, para mim, o carácter de ruptura com o modelo em que me revia; os olhos ainda mais tristes da minha mãe face à partida do homem que tanto amava e ao acréscimo de responsabilidades a pesar-lhe sobre os ombros; tentativas falhadas de convencer a minha mãe a transferir toda a família para o Brasil ou de retomar os estudos em Portugal, projecto que se esfumou ao cabo de um trimestre em 1962; anos de separação forçada, pai e mãe em países diferentes, eu com ele, com ela os meus seis irmãos, espíritos suspensos de pombos-correios de papel que transportavam emoções, sonhos, sóbrios êxitos e frustrações de um lado para o outro do oceano; finalmente, em 1969, o retorno meu e do meu pai quando os deuses determinaram que era chegada a hora de pôr fim a uma expiação injusta; cartas, viagens, a ânsia de iniciar nova existência, meses que parecia não conduzirem a uma saída, em Outubro desse ano; o namoro e o casamento, o nascimento do primeiro fruto da nossa união, nos três anos que se seguiram; novo curso superior, cinco anos na Universidade do Porto, uma caminhada difícil enfrentada com coragem e o precioso apoio da minha esposa; estágio pedagógico pejado de venenosas proximidades e golpes baixos de colegas que disputavam melhor classificação; as agruras duma vida profissional plena de escolhos e que, de onde em onde, nos reserva a fragrância e a doçura de frutos que esforçadamente cultivámos, a amizade de um limitado grupo de pessoas que foram companheiras de jornada e que persiste ainda depois de nos termos separado; a concretização de sonhos antigos, a satisfação de ter contribuído, pelo trabalho e pelo exemplo, para que o mundo seja um pouco melhor.

    Sempre recusei a superstição. Não acredito que a nossa vida esteja dependente dos astros ou de um destino cego e irresponsável. Aquilo, que muitas pessoas consideram sorte ou azar, nada mais é do que uma conjugação de factores naturais que, em dados momentos, pode favorecer-nos ou prejudicar-nos. Houve um tempo em que julguei ser contemplado por essa deusa caprichosa, em anos cuja representação numérica terminava em nove. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant referem que «nove parece ser a medida das gestações, das pesquisas frutuosas e simboliza o coroamento dos esforços, o remate de uma criação». Foi o ano do meu nascimento, o do meu regresso definitivo a Portugal, o do nascimento do meu segundo filho, o da minha efectivação na carreira docente, o da publicação do meu livro, acontecimentos que correspondem, indubitavelmente, à definição acima apresentada. Mas logo descobri que o simbolismo desse número é tão abrangente, não só na cultura ocidental como em quase todas as outras, que o torna, ao mesmo tempo, contraditório: «nove é o número das esferas celestes; é também, simetricamente, o dos círculos infernais». Reconheci, então que, em alguns desses anos, sofri decepções e vivi horas de grande angústia e incerteza de que o recém-findo 2009 é exemplo: ainda saboreava o êxito de que se revestiu o lançamento do meu livro e já uma inundação me causava um dos grandes desgostos da minha vida.

    Tal como os astros, a vida humana tem uma face oculta, aquela que o espelho não desvenda. Desconhecemos o que o futuro nos reserva e ainda bem porque, se assim não fora, a nossa existência constituiria um indefinível sofrimento, uma via-sacra de todo insuportável.

    Por: Nuno Afonso

     

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