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    Arquivo: Edição de 30-12-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    A Vida é um teatro

    Acorrem ao desmazelo alheio e, para muitos, são meros pormenores da paisagem urbana como as estátuas, os chafarizes ou os nichos a lembrarem as Alminhas ou um Santo de particular devoção, em que poucos reparam, embora ocupem um espaço e exerçam um ofício imprescindível à sociedade. Sem eles, os desperdícios humanos e os dejectos de cavalos, burros, cães, gatos e até de ovelhas e cabras nos dias de feira, transformar-se-iam em “focos de infecção” como dizia Cesário Verde a propósito das ruas de Lisboa no último quartel do séc. XIX.

    Diziam-me que estudara Filosofia mas, todos os dias, de vassoura, pá e carrinho, deixava a Rua Nova num brinco. Era de poucas falas, respondia aos cumprimentos dos passantes, conhecidos ou não, mas evitava conversas, numa cidade de província onde a coscuvilhice é tão natural como o ar que se respira.

    Por isso, eu resistia ao desejo de lhe fazer algumas perguntas que trazia no subconsciente, embora, com frequência, transitasse por aquela rua. Certa vez em que, ao contrário do habitual, não tinha horário a cumprir nem urgência de regressar a penates, após a saudação, fiz uma daquelas observações tolas sobre o tempo ou algo parecido e embalei para a primeira pergunta:

    – Consta-me que o senhor tem o curso de Filosofia. Porque é que decidiu empregar-se na Limpeza Urbana?

    – Muito eu gostava eu de saber a razão de tanta curiosidade, mas entendo que uma pergunta pressupõe a equivalente resposta.

    Olhou-me de frente, esboçou um sorriso, sem traço de constrangimento, e respondeu:

    – Olhe, eu sei que é estranho alguém desempenhar uma função humilde quando tem possibilidade de ir dar aulas para o Liceu, a ganhar muito mais e a ter uma vida social de primeiro plano. É isso que todos fazem: estudam com o objectivo de obterem um curso que lhes garanta um futuro rentável com mordomias e dinheiro suficiente para satisfazerem todos os seus desejos. Casam, têm filhos, aos quais transmitem os mesmos objectivos de vida que herdaram dos seus progenitores. Bem, a maioria não estuda por falta de recursos e os que podem nem sempre conseguem chegar ao fim, porque as famílias não têm meios ou as suas capacidades intelectuais resistem ao que delas se espera, ainda outros, a dado passo, derivam para caminhos menos ambiciosos. Nestes casos, cada um procura encaixar-se no puzzle social de acordo com as suas habilitações, nunca esquecendo que, muitas vezes, entra em jogo a famosa cunha para dar uma ajudinha a um candidato ocasionalmente em desvantagem. Não vou explicar-lhe com exemplos o que eu considero representação. Decidi ser eu próprio desde a escolha de uma profissão até ao meu comportamento no trato social, é tudo. O meu amigo, se reflectir bem no que lhe disse, talvez compreenda o meu pensamento.

    Dispensei outras explicações, agradeci e fui reflectindo nas suas palavras. Numa idade em que todos somos receptivos a ideias estrambóticas ou, apenas, divergentes das nossas, achei que talvez tivesse razão. Com efeito, ao longo da vida, tal como as personagens do teatro grego, vamos construindo máscaras que escondem os nossos medos, as nossas angústias, as nossas torpezas, aparentando o que julgamos mais valorizado no convívio social e mais importante para a própria afirmação em compita com os demais. Se, em determinado momento, o que pretendemos esconder irrompe desnudo, diz-se que “deixámos cair a máscara”, o que pode ser apenas um lapso não determinante para o seguimento do espectáculo ou comprometer, de todo, a representação. Aquilo que fomos aprendendo no lar paterno e o que nos inculcaram os formadores nas instituições que frequentámos, assim como a vivência quotidiana nas mais diversas situações constituem o património que nos habilita, por um lado a sermos autênticos, por outro a sabermos utilizar a máscara adequada a cada situação concreta da nossa vida. Não permitir que a representação se sobreponha à formação é um desafio que a todos é colocado durante a existência. O espaço desta crónica é limitado e não permite maior desenvolvimento. Deixo a cada leitor alguns tópicos para que possa fazer o próprio juízo.

    Por: Nuno Afonso

     

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