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    Arquivo: Edição de 10-09-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    O dinheiro não fala

    Vocês sabem lá o que era trabalhar, numa forja, junto ao enorme braseiro onde o ferro era aquecido a elevada temperatura – não havia termómetro que registasse em graus a intensidade do calor produzido – e, logo que ficasse incandescente, segurá-lo com uma comprida tenaz, colocando-o sobre a bigorna e bater nele com um martelo até que adquirisse a forma desejada, executar todo esse movimento no mais curto espaço de tempo enquanto o metal mantinha a ductilidade adequada? Suportar esse calor imenso e martelar durante horas seguidas, o corpo encharcado de suor, inspirando ar saturado de cinzas e outras impurezas que se colavam à pele como vermes, a boca seca e os brônquios sobrecarregados a dificultar a respiração, era trabalho não só difícil como heróico. Talvez por isso tenha surgido na mitologia grega o deus Vulcano representado com os instrumentos indispensáveis a esse mester indispensável na vida do homem pelos séculos afora

    Não, não se trata de ficção ou de um certo romanticismo, era assim a vida de muitas pessoas, ainda não há seis décadas, homens que exerciam profissões como ferreiro ou ferrador, dia após dia, seis dias por semana, ano atrás de ano, para ganharem o sustento próprio e o da família. Nunca ouviram falar de produção em série, de medicina e higiene do trabalho, de segurança social ou de reforma com direito a pensão. Não obstante, produziam centenas de peças quase sem interrupções, executavam tarefas que podiam provocar cegueira ou queimaduras graves sem protecção especial e não podiam contar senão com a força dos seus braços enquanto ela não faltasse e esperar que os filhos lhes dessem protecção na velhice e na doença.

    Quem podia economizava uns vinténs que lhe garantissem uma tranquila recta final na sua existência. Os filhos, quase sempre um cacho deles, nem sempre estudavam, o mais comum era que ajudassem o pai na forja logo que a idade lhes permitisse a execução de tarefas auxiliares como encher pequenos cestos de carvão que os adultos lançavam à fornalha, chegar a caneca da água aos mais crescidos, segurar as rédeas dos animais de tiro enquanto o ferrador lhes tratava dos cascos e lhos protegia com ferraduras. Aos poucos aprendiam a realizar tarefas consentâneas com o seu desenvolvimento físico e a sua queda para o ofício.

    O senhor Acácio era um dos mais procurados ferradores na cidade de Bragança. Nos anos quarenta e mesmo cinquenta, eram muitos os lavradores das aldeias próximas que possuíam cavalos ou éguas e neles se faziam transportar em suas viagens. Ter uma boa montada equivalia a possuir, actualmente, um automóvel de gama média ou elevada. Periodicamente havia que a levar ao ferrador como hoje não se pode dispensar o recurso às oficinas. O senhor Acácio fabricava ferraduras e cravos que aplicava às patas dos animais. Desempenhava, também, funções de veterinário, aplicando receituário a moléstias dos animais, mais frequentemente exteriores, assistindo a partos, emitindo pareceres de acordo com os sintomas que apresentavam.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    A clientela era numerosa e tornava-se necessário martelar muito para responder a tantas solicitações. Com o auxílio de um empregado e do filho mais velho conseguia sempre dar conta do recado. As receitas iam direitinhas para as mãos da mulher por quem tinha verdadeira adoração. É verdade que a família era numerosa – vingaram cinco dos filhos que a senhora Carolina trouxe à luz – e, além da alimentação, tinham que pagar renda de casa, água e luz, roupa e calçado. Todo o dinheiro apurado era entregue à dona de casa que o administrava como bem entendesse, uma vez que o marido tinha nela confiança irrestrita. Sempre que precisava de adquirir matéria-prima (ferro), reparar ou adquirir qualquer peça indispensável ao trabalho, pagar ao(s) empregado(s), satisfazer pagamentos inadiáveis, apresentava o cálculo da despesa à “tesoureira”. A resposta era sempre a mesma, ainda que tivesse recebido a féria do dia anterior:

    - Não há dinheiro. Sabes muito bem que é preciso ir à praça todos os dias e também ao talho e à mercearia. O Zezinho e a Dulce têm que pagar as propinas, os livros e os cadernos.

    Outras vezes referia roupa e calçado de que os filhos precisavam, uma reparação urgente na casa humilde que habitavam. Não havia forma de confirmar os gastos, porque o dinheiro não se depositava em bancos que emitissem extractos de conta, regularmente. Era mais comum pô-lo debaixo do colchão, guardá-lo no canto do baú, escondê-lo num desvão ou buraco da casa habilmente disfarçado. No caso presente, era quase impossível utilizar qualquer das opções habituais, atendendo ao número de pessoas que habitavam ou frequentavam a casa e que podiam “meter o nariz onde não eram chamadas”. O filho mais velho, o Armindo, tinha a certeza de que a mãe dava o dinheiro a guardar a alguém das suas relações, em particular ao tio Lourenço Pires, um vizinho muito solícito, ou a alguma das comadres, parceiras no “corte e costura”, tão à maneira dos meios pequenos. Muitas vezes já dera conta da sua desconfiança ao pai que lhe recomendava cautela, porque não queria magoar a sua Carolina nem levantar suspeitas acerca de outras pessoas sem absoluta certeza do que afirmava.

    Certo é que a oficina continuava a render bem, porém do dinheiro não havia rasto. Os filhos mais novos de nada se apercebiam, porquanto nem o pai nem o Armindo faziam comentários a respeito. Mas um dia a senhora Carolina sofreu aquilo a que hoje chamamos mais esclarecidamente um AVC que a prostrou no leito. Deixou de poder falar, emitia apenas uns sons inarticulados, e perdeu os movimentos do lado direito o que a impedia de escrever. O tio Lourenço Pires veio, pressuroso, visitar a sua amiga e colocar-se à disposição da família para o que fosse preciso. Ao vê-la naquele estado, deve ter sentido alguma tranquilidade: a doente não poderia reclamar o que era seu. Rareou as visitas e, por fim, deixou de aparecer.

    O Armindo bem se esforçou para levar a mãe a confessar onde tinha o dinheiro, mas tudo foi em vão. Ao referir o nome do vizinho, a mãe apertou-lhe o braço com a mão esquerda, ao mesmo tempo que produzia sons guturais e demonstrou uma forte agitação. Infelizmente, não conseguiu obter provas válidas numa possível acção em tribunal. Pouco depois, a senhora Carolina morreu e com ela naufragou o fruto de uma vida de trabalho insano do marido e do filho mais velho. Pareceu a muitos que a mudança operada no viver dos vizinhos foi suspeito: todos os filhos estudaram, adquiriram a casa onde viviam à renda e, algum tempo depois, compraram uma quinta nas imediações da cidade. Como o dinheiro não fala…

    Por: Nuno Afonso

     

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