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    Arquivo: Edição de 10-12-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Noite feliz

    Chamava-se Adília e nasceu numa família pobre.

    Quando alguém estranhava o nome, a mãe sentia necessidade de explicar:

    – Foi ideia do meu marido, lembrou-se da mãe dele. Se tivesse perguntado a minha opinião, eu tinha escolhido Ana, Rita ou Guiomar.

    – Guiomar ? – espantava--se a menina. – Que lembrança foi essa ? Nunca tinha ouvido tal palavra!

    – Não é nenhuma lembrança especial. Era assim que se chamava a minha avó.

    O pai da Adília falecera quando ela tinha apenas dois anos, num acidente entre a sua motocicleta e um veículo de quatro rodas. A Companhia de Seguros do homem que o atropelou recusou-se a pagar qualquer indemnização porque, segundo ficou provado, a vítima fora a única culpada do que tinha acontecido. Não respeitou um stop. Era marceneiro numa casa de móveis e o seu ordenado mal chegava para sustentar a família mesmo com os extras que fazia aqui ou acolá.

    A casa onde moravam era pequena, velha, muito arruinada. Situava-se num bairro onde o sol entrava à condição. As ruas eram estreitíssimas, cheias de curvas e havia prédios altos de construção recente e habitações térreas feitas há mais de cinquenta anos. Quando casou, foi viver ali com a esposa porque a renda era barata e tinha um quintalzinho onde cultivava batatas e legumes para ajudar na alimentação. Os móveis da casa foi ele quem os fez nas horas vagas com madeiras de menor qualidade que o patrão lhe ofereceu: uma mesa e seis cadeiras para a cozinha, onde habitualmente comiam, uma cama e uma mesinha de cabeceira para o quarto. Além disso, havia meia dúzia de pratos, outros tantos talheres, copos e as panelas indispensáveis para preparar as refeições.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    O único adorno que a casa possuía era uma boneca de cabelos louros como estrigas e olhos azuis de safira, com roupa de cores garridas e sapatinhos de cetim que o Homem das Renas deixara junto ao Presépio no Natal anterior à morte do pai. A mãe considerou-a tão preciosa que a colocou em sítio onde a menina não conseguisse chegar para não correr o risco de que a estragasse. Mais tarde pô-la sobre um guarda--roupa antigo que lhe ofereceu uma das senhoras para quem trabalhava.

    Em casa havia, agora, outro homem que não dava a menor atenção à miúda, antes a tratava como um estorvo. Lembrava-se dela apenas para a mandar ao tasco, que frequentava com os amigos da borga, para lhe trazer cigarros que mandava pendurar ou ao mercadinho da esquina comprar pão e fiambre que não repartia com ela. Aliás, nunca lhe ofereceu um rebuçado ou um bolo pelos recados que lhe mandava fazer. A Adília não lhe chamava pai, como a mãe queria, nem lhe falava a não ser para responder às suas perguntas. O homem entrava e saía de casa com frequência e passava grande parte do tempo a ver televisão, em geral, os programas mais reles que havia nos quatro canais. Arranjara modo de captar uma série de outras redes sem ter que pagar assinatura de que era único usufrutuário. Não tinha emprego nem fazia esforço para o arranjar, enquanto a mãe da Adília trabalhava "a dias" desde que lhe faltara o ordenado do falecido marido. Não havia ali qualquer outro rendimento declarado.

    Quando entrou na Escola, conheceu outras meninas com quem fez amizade. Andaram juntas desde o Jardim de Infância até à Escola Básica dos 2º e 3º ciclos onde agora se encontravam. Eram elas a Ângela, a Filipa e a Patrícia. As duas primeiras moravam nos prédios altos daquela rua; a casa da Patrícia ficava um pouco mais longe. Depois das aulas brincavam no jardim da praça onde a rua começava. Em dias de chuva, a mãe da Adília levava-a até ao prédio onde morava a Ângela e entregava-lhe uma caixinha com bolos para ambas lancharem. Brincavam numa sala onde a amiga tinha muitas bonecas todas diferentes, jogos, televisor e aparelhos de som para ouvir música. Passavam ali tardes encantadas. A mãe da Adília vinha buscá-la quando regressava do trabalho.

    Nesse ano, a Ângela convidou a amiga para passarem juntas a Noite de Consoada. A mãe, primeiro opôs-se, mas acabou por aceitar no dia em que a mãe da Ângela lhe fez o pedido pessoalmente. Seria a primeira vez que passava aquela noite sem a filha, mas sabia que ela ficaria feliz.

    Foi, realmente, uma noite inesquecível para a Adília, porque, além do magnífico jantar num ambiente alegre e das brincadeiras com a sua grande amiga, também não foi esquecida pelo Pai Natal que ali deixou para ela uma prenda como nunca tivera depois que perdeu o pai.

    Por: Nuno Afonso

     

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