Um gesto ou dois
O homem tinha a cara enrugada, poucos dentes e um aspeto decrépito. Teria mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o por um misto de piedade e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é, o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam “cheios” - prenhes -, mas também ajudava em inúmeras outras tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água para acartar.
Era por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e “de comer”. Ficou a dormir num catre no palheiro e arranjou-se-lhe uma mesinha onde comer logo à esquerda da porta de entrada, separada do lume pelo monte de lenha. Os patrões e o filho pequeno comiam a dois metros dele, numa mesinha igualmente pequena e sentados em bancos rasteiros.
Os tempos eram outros. Não havia eufemismos - empregados, trabalhadores agrícolas, assalariados -, só patrões e criados. A penúria dos agricultores rendeiros era quase tão grande como a dos criados, e não só na Beira Baixa. No entanto, vincavam bem as diferenças. Por isso o ti Mné Lucas, como o chamavam, sentava-se a uma mesa separada da dos patrões. E comia pão centeio. E dormia no palheiro.
Para o miúdo da casa, um catraio de seis ou sete anos, a chegada de um velhote carcomido, mas simpático, prometia animar a monotonia campestre. Sentiu curiosidade, alegria, ternura. Certa vez, pediu mesmo aos pais que o deixassem acompanhá-lo no percurso matinal com o rebanho. Foi uma longa e maçadora caminhada pelas encostas circundantes, mas o velhote acabou por animar o garoto ao construir um pequeno redil de brincar com muros de pedrinhas e cancelas feitas de pauzinhos. Quando chegou a hora de comer, partilharam o pão centeio dele, com algum conduto - certamente azeitonas, talvez queijo -, e ainda hoje o rapazito gosta da côdea queimada do pão centeio.
Era rotina de saídas dos patrões irem à terra de quinze em quinze dias, a uns doze quilómetros, mas nunca passavam o Natal no campo. Exceto daquela vez: havia um assunto que o patrão não quis deixar entregue a outros, talvez uma vaca a parir.
A ceia desse Natal, como todas, foi cozinhada em panelas de ferro, ao lume aceso no chão, a um canto da casa, com o fumo a escoar-se pelas telhas e, como quase todas as outras, batatas cozidas com couves, acompanhadas com uma fatia de toucinho e rodelas de morcela. Além do lume, só tremeluzia a chama de um candeeiro a petróleo, que se perdia na vastidão da casa.
A única diferença foi que, apesar de não ser uma ceia especial, todos sabiam que era noite de Natal, até porque nesse dia a patroa tinha amassado as filhós e tinham estado a fritá-las na caldeira de cobre antes da ceia. E havia um certo sentimento de complacência no ar. A patroa murmurou qualquer coisa para o patrão, este meditou uns segundos e chamou:
- Ó ti Manel, é Natal. Venha aqui para a nossa mesa!
E pela primeira vez em três ou quatro anos, o ti Mné Lucas foi comensal dos patrões. A princípio, não se falou muito mais do que nas outras noites, mas o ambiente era afetuoso e no fim comeram-se filhós à roda do lume. Nessa noite, contaram-se algumas histórias já conhecidas, evocando
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Por:
Joaquim Bispo
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