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    Arquivo: Edição de 15-02-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    O avarento

    Não há comunidade, mesmo pequena, que não inclua este tipo social, motivo de censura e de (in) contido escárnio. Vem sendo glosado, ao longo dos séculos, por poetas e prosadores que dele têm feito leitmotiv das suas obras. O indivíduo que leva ao caricato e ao ridículo a preocupação de poupar, provavelmente, virá desde o alvorecer da humanidade e tudo indica que há-de continuar a existir no futuro.

    Alguns dramaturgos como Menandro entre os gregos e Plauto, o mais importante comediógrafo latino, fizeram dele personagem central de algumas das suas peças teatrais. Aristóteles censurou a retenção extrema de propriedade na sua obra filosófica. No teatro grego em que a tragédia desempenhou papel de grande relevo, a dado passo, e, provavelmente, para reduzir a tensão levada ao paroxismo das emoções suscitadas nos ouvintes pela representação em palco, foi introduzido nos programas um género de comédias populares, muitas vezes grosseiras, chamadas Atelanas em que os actores, mascarados, improvisavam os diálogos com o objectivo de incentivar a hilariedade do público. O Pappus era o tipo social mais frequentemente visado nessas representações, o sovina que se tornava pomo de atracção de todos os oportunistas: familiares e trapaceiros de toda a ordem, interessados nos haveres tão ciosamente escondidos.

    Na Commedia dell’Arte (séc. XVI a XIX) aparece com frequência a personagem de Pantaleone, velho endinheirado, de Veneza, a quem os filhos procuram extorquir o dinheiro com o auxílio dos criados.

    Na mesma linha encontramos um dos maiores escritores do século XVII, o genial Molière que, em 1668, escreveu e levou à cena o seu “Avarento” em que dá vida a um inimitável Harpagon.

    Tomando a avareza em tom mais sério e em nome da moral cristã, os Padres da Igreja fustigam este vício com energia, nomeadamente Santo Ambrósio e Santo Agostinho que distinguem na avareza três componentes: um interior, o apego desordenado e dois exteriores, «a busca sôfrega e a retenção tenaz». O mesmo fez S. Tomás de Aquino que, inspirando-se nos anteriores e em Aristóteles, elaborou na “Summa Theológica” a posição clássica da instituição religiosa: a Avareza é considerada, à luz da doutrina cristã, como um pecado capital.

    O avarento presta-se ao cómico porque é um tipo essencialmente explorável, em todo o sentido. Acumulando riquezas, sem outra finalidade que a de sentir-se seguro (uma das poucas seguranças dos velhos), a sordidez leva-o a toda a espécie de ridículos e aos que o rodeiam a tentar enganá-los. Mas da avareza podem resultar situações dramáticas como Balzac nos apresenta no romance Eugénie Grandet em que a mesquinhez do tio Grandet estiola a juventude da filha, oprime e apaga a mulher e faz da criada Nanon, que se adapta ao repugnante procedimento do amo, um tipo sub-humano de aceitação.

    Quando se fala deste género de avarento, capaz de utilizar os processos que julga mais adequados para aumentar e conservar a sua riqueza, não podemos esquecer que existe uma graduação neste apego material e que a própria mentalidade consumista actual conduz à exacerbação da posse e do regateio. Há mesmo quem valorize essa forma de estar na vida, tomando-a como exemplo. Reparem no homem que “veio do nada” e, à força de poupança, construiu um império económico e financeiro!

    Todos conhecemos pessoas de quem se diz que “não o comem para não o defecarem” (o vulgo utiliza um vocábulo mais rude no final da expressão), mas sobre elas já não impendem as consequências de outrora. O antigo governador do Banco Mundial tornou-se universalmente famoso quando se deslocou a um país muçulmano e, como determina a lei corânica, teve que descalçar os sapatos ao entrar numa mesquita. Um repórter fotográfico, de olfacto profissional apurado, gravou para a posteridade o momento em que aquele dedão indiscreto fez da meia ilustre janela de barraco. O Amaral, personagem do meu livro “O Meu Povo em Gente”, e de que já fiz crónica publicada neste jornal, era um exemplar desta espécie extremada de forreta que levou o apego à materialidade para além da própria morte ao declarar que, antes de partir, havia de pôr todo o seu dinheiro num chocalho e escondê-lo em sítio onde os seus vizinhos passassem a todo o momento sem o encontrar. Faltou a promessa de que voltaria para o arrecadar, quem sabe no Dia do Juízo Final, desde que lhe permitissem levar semelhante carrego para a Eternidade.

    O Touças já não seria tão sovina mas, ainda assim, o suficiente para colocar em risco a estabilidade familiar, o convívio sadio com a esposa, senhora Luisete, mais os três filhos de que se orgulhava, por uma teima com a mulher acerca de algumas centenas de escudos. O facto é que ele sempre controlara em absoluto as finanças do agregado familiar e quando, em certa ocasião, a senhora Luisete lhe comunicou que passaria a reter, daquilo que as freguesas lhe pagavam, um quantitativo mensal para gastos pessoais e dos filhos que andavam mal vestidos e mal alimentados, o homem “foi aos arames” e recusou, peremptoriamente, satisfazer a pretensão. Homessa, era o que faltava! Onde já se vira tal desconchavo? Conversa para cá, conversa para lá, discussão em crescendo, ofensas mútuas a ponto de a senhora Luisete quase pôr as cartas em cima da mesa. Ocorreu ao Touças, num último assomo de lucidez, recorrer ao seu velho amigo Adérito. Vai daí, em noites sucessivas, foi procurá-lo e expor as razões que lhe assistiam, confiante no seu bom senso e certo de que lhe daria os argumentos definitivos naquela pendenga com a mulher. Ao invés do que esperava, o Adérito foi dizendo que ela era uma mulher trabalhadora que sempre o ajudara, se ambos contribuíam com o respectivo trabalho para o sustento do lar, ambos deveriam dispor de recursos para o que necessitassem, mormente em se tratando dos filhos. Ele, Adérito, e a mulher, que estava ali e não o deixava mentir, tinham só um mealheiro e cada um a ele recorria para as despesas que julgava indispensáveis. À falta de algo mais convincente para retorquir, o Touças saiu-se com esta:

    – Mas…eu só quero ver a cara do Cristo!

    Lá na dele, pretendeu dizer que, o importante era ver as notas, isto é, que o dinheiro lhe fosse entregue, ele lhe daria o que fosse preciso. O Adérito respondeu que isso não resolveria a questão, porque a mulher teria sempre que lho pedir e, pelos vistos, já não estava disposta a isso. Só depois de muita explicação é que o Touças acabou por dar a mão à palmatória e voltar às boas com a mulher.

    Na sociedade actual, quem se deixa lograr, nem que seja num mísero tostão, é considerado, fraco, burro e alvo de zombaria, baseada na teimosa obsessão de parecer esperto, ludibriando os demais. Parece terem-se invertido os termos da questão: o ridículo deixou de ser o que disputa ao milímetro a posse de algo e trocou o seu papel com o que facilmente se deixa enganar. O alcance e retenção viciosos da riqueza levam, com muita frequência, a discussões, inimizades e à prática de crimes violentos por “dez réis de mel coado”, no dizer do povo. A vivência actual e a informação colhida nos mass-media trazem-nos, diariamente, casos elucidativos desta mentalidade.

    Na moderna Psicologia, a avareza aparece como manifestação patológica de uma das tendências fundamentais do homem: a economia. G. Mardel, entre outros, renovou o tema de que possuir é, muitas vezes, ser possuído. Concordo inteiramente, não só porque o sujeito se deixa dominar por um instinto irracional de acumulação, mas, acima de tudo, porque demonstra insegurança face aos demais.

    Por: Nuno Afonso

     

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