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    Arquivo: Edição de 31-01-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Frustração

    Há momentos em que temos a nítida percepção de que andámos a desperdiçar a nossa vida em termos profissionais. Generalizar é sempre perigoso mas eu atrever-me-ia a dizer que poucos atingem a plena realização dos seus objectivos de vida. Teria que haver uma coincidência absoluta entre o que sonhámos e o que, efectivamente, conseguimos atingir.

    Antes de mais, pode suceder que o nosso desejo se torne inalcançável por motivos diversos: um perfil desajustado ao que ambicionamos; maior procura do que a oferta disponível e incapacidade para chegar entre os primeiros; desilusão ante o quadro que se nos depara quando, enfim, logramos acercar-nos daquilo que tanto nos seduziu.

    Para bem e para mal, o ser humano é um insatisfeito. Em qualquer actividade, há momentos que nos parecem de completa realização, mas tão fugazes porque ainda queremos mais, como porque já sentimos a dor de os perder. Em todo o caso e assumindo que a total felicidade é a maior das utopias, há casos em que se pode afirmar, convictamente, que era esse o objectivo que se pretendia atingir, pois estar realizado em todos os momentos da existência é impossível. Só nesta perspectiva consigo entender alguém que afirma ter alcançado o que sempre desejou.

    Sabemos, por experiência própria, que os sonhos alteram-se, pervertem-se, diluem-se e, em seu lugar, surgem outros que, por seu turno, dão vez a terceiros e assim por diante, tendencialmente até ao infinito. É preciso ter em conta a mudança de idade da pessoa e as circunstâncias que acompanham cada uma delas. Em crianças é comum pretendermos seguir a profissão das pessoas que mais admiramos, seja o pai, um irmão mais velho, um parente por quem nutrimos um afecto especial, uma figura que atrai a estima geral. Surgem, então, os sonhos de ser bombeiro, padre (em gerações passadas), motorista, cientista, jogador de futebol, surfista, cantor ou músico de sucesso quanto aos rapazes; educadora infantil, modista, modelo fotográfico ou de moda, cantora, atleta em relação às moças.

    À medida que crescemos, diferencia-se o enquadramento da nossa vida. Na adolescência, acompanhando o atropelo das emoções, dominam as tendências para o mediatismo: para os rapazes o desporto, sobretudo o que é acompanhado de promessas financeiras motivadoras e a música, seja como cantor, seja como instrumentista; quanto às jovens o mundo da moda é uma obsessão. Já poucos pensam numa profissão tradicional que implique horários, aplicação séria ao trabalho e remuneração modesta, ainda por cima sem garantia de estabilidade.

    A certeza do trabalho precário gera instabilidade, logo enfraquecimento da coesão social. Os jovens aperceberam-se disso há muito e não crêem nas condições que lhes são oferecidas pela sociedade. Estudar, tirar um curso superior universitário ou politécnico não os atrai, a menos que os interessados possuam capacidades excepcionais que lhes permitam ingressar em Medicina, alguns ramos da Engenharia ou Arquitectura em Universidades bem cotadas. Que lhes resta, então? A via legal pode passar pelo futebol, pela moda, pela música… só para os predestinados; os atalhos de circulação proibida conduzem-nos ao mundo do crime donde lhes acenam com chorudas recompensas enquanto não caírem nas mãos dos zeladores da Lei. Parece haver espaço para recrutas nesse campo, alguns têm mesmo direito a serem entrevistados, gabam-se das generosas compensações monetárias que auferem e não admira que, um destes dias, alcancem o direito ao associativismo, descontando para a Segurança Social à custa da insegurança alheia.

    Foto ARQUIVO URSULA ZANGGER
    Foto ARQUIVO URSULA ZANGGER
    O capitalismo desenfreado, chamem-lhe neo-liberalismo, globalização ou qualquer outro nome pomposo, é responsável pelas dificuldades de acesso e permanência no emprego, pelas crises financeiras, pelas fraudes, pelas falcatruas, pelo agudizar das tensões sociais e, em larga medida, pela criminalidade violenta e pelo desânimo da juventude em relação ao futuro.

    Embora, como toda a gente, tenha sonhado com outras profissões quando fosse grande, eu e a carreira docente tivemos um namoro sem compromisso durante vários anos até que, gorada a hipótese de exercer a carreira de sociólogo, licenciei-me em Filologia Românica e enveredei, decididamente, pelo ensino. Durante trinta e cinco anos, exerci, com dedicação a nobre missão de preparar novas gerações para o futuro. Estimulei sempre os meus alunos, apresentando-lhes a instrução como chave para o sucesso. Tentei vencer resistências pela acção e pelo exemplo. De alguns obtive reconhecimento mas, infelizmente, quantos ficaram pelo caminho! Como dizia o grande poeta e também professor Sebastião da Gama, «…o que eu quero é que sejam felizes».

    De minha parte, lamento que, nos últimos anos, tivessem lançado sobre nós um anátema de todo injustificado. Não valeria a pena lembrar que existem maus professores como sucede em todas as profissões, mas posso garantir que uma grande parte dos docentes, no passado e no presente, foram exemplos de dedicação às crianças e jovens deste país. Fomos nós que evitámos o colapso dum sistema de ensino coxo, descoordenado entre os diversos níveis, sustentando a desordem dum ministério sem autoridade moral nem visão de futuro, legislando sempre em atraso e ao sabor das circunstâncias, incapaz de gerir a sensível máquina que tinha em mãos.

    Esta é talvez a profissão mais mal compreendida por quem nunca a exerceu. A imagem que os “leigos”cultuam é tão distorcida que mais valia confessarem a sua ignorância e absterem-se de pronunciamentos ridículos, ao invés de repetirem, como o papagaio, que os professores trabalham pouco e ganham muito. Esquecem-se dos fins-de-semana perdidos a elaborar e a corrigir testes, de horas sem conta a preparar materiais para as suas aulas, a realizar tarefas que não são deles, de noites mal dormidas com a preocupação de recuperar alunos com problemas de toda a ordem, portadores de uma herança de incivilidade, de alcoolismo, de violência e má educação.

    De tudo o que temos vivido, resta a consciência do dever cumprido, mas martiriza-nos a frustração de vermos ignobilmente traídos os nossos ideais.

    Por: Nuno Afonso

     

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