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    Arquivo: Edição de 15-10-2008

    SECÇÃO: Cultura


    Era uma vez um escritor... que não gostava de viajar

    Fotos URSULA ZANGGER
    Fotos URSULA ZANGGER
    Tarde de aguaceiros, mas o dia está surpreendentemente quente. Na Biblioteca Municipal, irrequietas, crianças das escolas EB 2/3 de Campo e da Secundária de Valongo estão ali à espera de Manuel António Pina. É o dia 4 de Outubro. Pergunto-me como irão escutá-lo, e se ele, ainda convalescente, não vai ter ali que suportar uma dura prova. Quando chega, a algazarra acalma, e nele percebo-lhe o rosto decidido e os gestos vigorosos. Está de volta, parece bem. E vê-se logo que sim, às primeiras palavras.

    «Estou aqui para falar da minha vida e da minha obra, bom... é suposto ter uma vida e uma obra...», graceja.

    Alguém da plateia, lá de trás, um dos poucos adultos que ali foi ao meio da tarde para o ouvir, pede que ele ponha a cadeira em cima do palco, que assim não se vê, nem se consegue escutar bem. Até Fernando Melo, também ali presente, ajuda na operação.

    E conta como nasceu numa pequena vila da fronteira, o Sabugal, na Beira Alta, e como ao ver o mapa, com a sua terra ali mesmo a um centímetro da fronteira, já tinha pensado que, por um centímetro... era espanhol».

    ... E muitas coisas foram assim na sua vida, por um centímetro, por um segundo, por um acaso.

    Conta como, quando foi para escola, já sabia ler, aprendeu nas letras dos títulos dos jornais que o pai trazia.

    Este, funcionário das Finanças, era obrigado por lei a mudar de terra pelo menos de seis em seis anos (o que, até por maior comodidade e precaução, abreviava para quatro), de forma que ele andou sempre de trouxas de lado para lado e nunca teve amigos de infância. Os mais velhos de que se lembra são os do Porto, com 16/17 anos.

    Talvez por isso, ele que já correu o mundo de lés-a-lés, até pelo seu ofício de jornalista, detesta viajar, confessa. As viagens recordam-lhe sempre a perda de coisas.

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    E recorda também o seu atribulado périplo escolar: Castro Daire, Sertã, Castelo Branco, Cernache do Bonjardim, Santarém, Oliveira do Bairro, Aveiro, Porto...

    Fez o curso de Direito na Universidade de Coimbra, como trabalhador-estudante, sem nunca ter ido a uma aula.

    A escrita começou desde cedo, desde que se lembra. E conta aos miúdos como é que num dia de pavorosa trovoada, ele, cheio de medo, estava ali aos pés de uma cadeira a escrever sobre o milagre das rosas da Rainha Santa Isabel. Como era uma hitória de que ele gostava muito, usava-a como um refúgio para dissipar o medo.

    As perguntas sucedem-se. Sobre o acordo ortográfico: diz que não é a favor nem contra. Quem faz a língua é quem a fala. E explica como a língua é um ser mutante, como a gente.

    «O primeiro livro que eu publiquei, na verdade foi escrito por outra pessoa». Por exemplo, desde que a conferência tinha começado até ali, já praticamente todas as suas células tinham morrido e sido substituídas por outras. Ele já não era a mesma pessoa.

    E explicou como os gostos iam variando, como os escritores geralmente escolhiam como a obra preferida a última que tinham escrito. E onde escrevia? As crónicas e os contos no computador, quanto à poesia, onde calhava (até já tinha apanhado uma multa por ir a escrever ao volante), confessou ali diante de todos para mau exemplo da sala. Mas escrever, esclareceu, não é um automatismo, muitas vezes é um acto demorado e trabalhoso. E citou Paul Valéry, que dizia que o primeiro verso nos era dado e os outros conquistados com trabalho.

    E falou do seu trabalho e da sua implicação nele. «Quando um escritor escreve um romance, com cem personagens, todas aquelas personagens são ele». As suas memórias, os seus sentimentos.

    Brinca à Matemática com um rapaz que lhe pergunta quando publicou o seu primeiro livro (foi em 1973).

    Quer saber os nomes dos seus interlocutores e não os esquece na suas respostas.

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    Revela como escreve poesia, poemas e não livros, estes é que depois lhe pedem para se reunir.

    Publicou cerca de 40 livros, os de poesia mais ou menos ao ritmo de um em cada quatro anos.

    «O que vocês encontram dentro de um livro é o que encontram dentro de vós mesmos», anuncia.

    Os miúdos bebem as suas palavras. Quando se aproxima a hora da camioneta que os há-de levar, oferecem--lhe um quadro, isto é, uma cartolina. Com imagens e um texto. O título, “O Fascínio de António Pina”. Quem será António Pina? Assim à primeira, não parece o tipo que escreveu “Aquele que Quer Morrer”, digo eu.

    No fim, o interminável e laborioso autografar de um sem-número de livros.

    E as conversas, como as cerejas...

    Por: LC

     

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