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    Arquivo: Edição de 29-02-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Rarum unum, nunquam duo, semper tres

    Esta sentença latina foi, durante várias décadas, um dos pontos fulcrais no Regulamento do Seminário que frequentei. É provável que fosse herança de tempos remotos, de séculos passados.

    Vivemos uma época em que, finalmente, o abuso sexual de crianças e de jovens foi mostrado em toda a sua hedionda dimensão. À imprensa deve ser atribuído o mérito de ter despertado consciências, ao alertar para um tipo de crime que não é de hoje, mas que a humanidade manteve reservado ao longo de séculos e cujo conhecimento não merecia público repúdio, levando a que as vítimas se calassem por vergonha ou temor face à posição social, económica ou política dos prevaricadores. Sociedades houve em que abusos desse jaez eram tolerados e até considerados normais como sucedeu durante o Império Romano em que imperadores e outros altos dignitários mantinham relações com crianças e jovens do mesmo sexo.

    Muitos leitores se recordarão de que, há mais de vinte anos, a manchete de um semanário que referia casos de pedofilia, esbarrou na indiferença das autoridades civis e judiciais. Quando o “escândalo” Casa Pia deflagrou, souberam-se histórias de antigos alunos, então já adultos, que situaram os actos criminosos duas ou mais décadas antes. Ainda assim, é possível que situações dessa natureza fossem praticados na referida instituição, eventualmente noutras, há muito mais tempo, mas que não foram trazidos ao conhecimento geral porque as vítimas, não querendo expor-se, refugiaram--se no silêncio. Em 1963, numa curta permanência em Lisboa, ouvi falar de crianças e adolescentes que, na área fronteira ao Mosteiro dos Jerónimos, aguardavam automóveis que os transportavam a casas particulares onde eram abusados sexualmente. As circunstâncias mudaram entretanto e as notícias divulgadas pelos jornais calaram fundo nas consciências das pessoas, que reagiram indignadamente contra os causadores de tais violências contra seres desprotegidos.

    Em várias partes do mundo os alarmes soaram nos derradeiros anos do século XX. Antes de Portugal, já a Bélgica fora sacudida pela denúncia do que ficou conhecido como caso Dutroux. A sociedade civil levantou-se indignada ao tomar conhecimento das dimensões do crime e entendeu que a justiça não actuava com a celeridade que se impunha. Realizaram-se grandes manifestações de rua onde as autoridades eram acusadas de cumplicidade relativamente aos acusados. Em Inglaterra, as queixas sobre a prolongada ausência de miúdos de ambos os sexos foram aparecendo nos media com certa regularidade mas, não obstante as campanhas de jornais e de outros meios de comunicação de massas, foi impossível encontrar-lhes o rasto.

    Neste rectângulo, já são numerosos os meninos e meninas que foram dados por desaparecidos. O caso da pequena Madeleine tem atraído para o nosso país as atenções do mundo inteiro. As polícias nacionais e internacionais fazem investigações no terreno, cruzam dados informáticos entre si, infelizmente sem êxito. Parece não haver notícia de um único resgate, sequer um frágil indício que ilumine o tenebroso caminho seguido pelos raptores. Onde se acoitarão? De que meios fazem uso para apagarem todos os rastos que a eles possam conduzir? Haverá uma super-organização criminosa em cuja capa se ocultam?

    Sincronicamente, vêm à luz escândalos de índole sexual, envolvendo figuras do clero católico. Numa época em que o racionalismo impera, em que as crenças religiosas são desdenhadas, sobretudo na Velha Europa, em que uma vaga de agnosticismo, se não mesmo de ateísmo, sem precedentes, assola grande parte do mundo, tal nódoa sobre uma das mais importantes religiões existentes causa enorme perplexidade e não falta quem junte às acusações costumeiras feitas à Instituição Católica um sarcástico:

    - Eu sempre disse que…

    Acontece que, muitas vezes, afirma-se o que mais convém, não à verdade dos factos nem à análise ponderada das ocorrências, mas aos humores das vísceras de cada um ou aos critérios discutíveis que opõem uns às crenças dos outros. Até porque… é moda, sinal de inteligência – será? – perante os elementos dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte: família, colegas de trabalho ou profissão, malta do café…

    A Instituição Católica tem muito de que se penitenciar e os seus mais altos representantes já o reconheceram e, humildemente, pediram perdão. Também os seus membros sofreram perseguições, difamação, tortura e morte em diversas ocasiões. Aqui não entra, de modo nenhum, a lei das compensações. Humanos que somos, logo imperfeitos, estamos propensos ao erro que as circunstâncias potenciam. É igualmente verdade que aspiramos à perfeição e, apesar dos tropeços, têm-se registado avanços na caminhada para eliminar a injustiça no relacionamento humano.

    Longe de mim a intenção de reduzir a culpa dos que prevaricaram. Aos membros do clero devem aplicar-se os mesmos critérios que presidem ao juízo que fazemos acerca de qualquer outro cidadão, com a agravante de que representam Alguém que veio trazer ao mundo a Lei do Amor e que causticou os maus costumes da Humanidade. Livremo-nos, contudo, de pretender extrair do particular o universal, ou seja, de generalizar o erro, que alguns cometeram, aos horizontes da comunidade a que eles pertencem.

    Dizer, como já ouvi, que todos os clérigos são abusadores, que os internatos são antros onde se cometem, habitualmente, esses nefandos delitos é, com certeza, excesso de linguagem. Que as condições existentes podem favorecer ocorrências aqui ou ali, somos forçados a admiti-lo mas daí a considerar que é uma inevitabilidade e uma consequência natural vai enorme distância.

    A norma em epígrafe é elucidativa do cuidado que a tais instituições a questão merecia. Ao longo de séculos, foram acumulando experiências que lhes permitiram legislar de molde a condicionar se não a obstar à concretização de pulsões que se revelam muito fortes em adolescentes e gente mais crescida em ambientes de internamento.

    A minha experiência, desde os dez aos dezasseis anos, atesta que sempre existiu vigilância apertada de prefeitos e reitor do Seminário sobre educandos e respectivos educadores e que a aplicação de medidas era, antes de mais, preventiva, consoante a regra citada. O aluno que andasse habitualmente sozinho era merecedor de atenção específica para despistagem do problema que o afectava a que se seguia o adequado tratamento, de acordo com o empirismo psicológico que então existia. As amizades exclusivistas e assíduas costumavam desembocar na expulsão de ambos os actores, com a possível discrição face à comunidade. Aqueles que não privilegiavam qualquer colega na sua convivência diária estavam além de suspeições.

    Lembro-me de dois casos em todo esse tempo e parece que “entre mortos e feridos salvaram-se todos”, na versão divertida do conhecido provérbio.

    Por: Nuno Afonso

     

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