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    Arquivo: Edição de 15-11-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O João Boucinhas

    Em casa do João Boucinhas, a cada nascimento havia zangas, recriminações, impropérios. Foi assim com a Paula, a primogénita, e o caso agravou--se quando chegou a vez da Elisabete e, mais tarde, da Carla. Nesse tempo só era conhecido o sexo do bebé quando ele próprio mostrava as suas credenciais. Fosse antes, como presentemente acontece, e talvez o Boucinhas tivesse passado das palavras aos actos. Tinha maus fígados o traste e a ignorância tornava-o ainda mais verrinoso e truculento. Era sabido que não se ensaiava nada para zurzir na mulher, paraplégica em consequência de uma poliomielite contraída na infância.

    Os que com ele conviviam de perto, tão antiquados de ideias como o próprio, não podiam admitir a covardia, mas abstinham-se de o censurar por comodismo, ou medo de represálias. Quando juntos bebiam a zaragatoa(1) que o Paulino lhes vendia na taberna, ouviam-lhe o comentário desdenhoso:

    – Mulheres! Só servem para arranjar chatices a um homem. Eu preciso é de braços rijos para me ajudarem no trabalho do campo...

    Todos sabiam que o Boucinhas tinha poucos bens ao sol. Dois ou três chãos onde cultivava o renovo e as batatas para sustento da família e para a ceva do reco que havia de ser sacrificado no princípio do Inverno e daria o conduto das refeições, poucas e ruins terras de pão, um lameirito para alimentar o macho que puxava o arado e era o seu meio de transporte, aquilo a que ele chamava vinha, pouco mais de duas centenas de metros quadrados plantados de cepas decrépitas e sem linhagem, umas quantas oliveiras que, em anos de excelência e com muita parcimónia, lhe garantiam o azeite para a ceia da consoada, a confecção dos enchidos e do folar da Páscoa e pouco mais. Qualquer bom lavrador dava conta do amanho deste património mesmo sem recorrer à torna-jeira(2) dos vizinhos. O que dava à família certo desafogo era o ordenado da mulher, regente escolar(3), curtinho mas certo ao fim do mês.

    Um dia em que o nosso homem insistia nas críticas à falta de préstimo das mulheres, o Cajotas, que muitos consideravam meio desaparafusado, lembrou-lhe:

    – Devias era agradecer a Deus por te dar filhas para ajudarem a mãe que é tolheita(4). Se fossem rapazes, não tinhas que lhes dar que fazer, andavam por aí ao alto a beber e a jogar a batota.

    Tais palavras não tivesse dito, porque o Boucinhas foi-se a ele e, se os presentes não tivessem sido lestos a segurá-lo, o Cajotas teria pago caro o atrevimento. Safo daquela, ainda ouviu o outro dizer que, se voltasse a dizer baboseiras, acabava-lhe com os ferros de compor(5).

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    À medida que as filhas cresciam, exigia que o acompanhassem e distribuía-lhes tarefas quantas vezes superiores às suas forças. Conhecendo-o, obedeciam sem repontar, com medo de provocarem a sua ira. A D. Fulgência, com o auxílio de duas bengalas ou só de uma, consoante o género de trabalho a fazer, conseguia dar conta da lida da casa e ter o jantar ou a ceia prontos para quando eles chegassem. Mas raramente comiam em paz, porque o Boucinhas arranjava sempre motivo para ralhar com alguém, de preferência com a mulher. Se ela ousava responder, insultava-a e, quando calhava, punha-lhe as mãos na cara. Noutras ocasiões comia em silêncio e nem dava troco a quem lhe dirigisse a palavra.

    Houve, porém, um dia em que a D.Fulgência não transigiu com a ditadura do marido: quando a Paula terminou a instrução primária, sempre com excelente aproveitamento, disse ao marido que a menina teria que continuar os estudos na cidade. Ripostou o Boucinhas que não tinha dinheiro para luxos daqueles e que agora é que ela lhe podia dar uma boa ajuda, que estava mais crescida. Com firmeza a D.Fulgência insistiu que a lavoura não dava futuro a ninguém, a rapariga, inteligente como era, havia de ter um curso que lhe desse vida mais limpa do que a deles. O homem recorreu aos procedimentos habituais, mas esbarrou numa oposição obstinada, inflexível. Também ele não cedeu e, como a mulher deixasse arrefecer o assunto durante algum tempo, julgou ter vencido mais uma vez, até que a D. Fulgência lhe mostrou a prova da matrícula da pequena no Ciclo Preparatório e lhe garantiu que ela iria ficar em casa duns amigos da cidade, quisesse o marido ou não. Até já tinha pago um mês de pensão, dali em diante, todos os meses teriam que reservar algum dinheiro para esse fim. Ficou o homem aturdido, mas não deixou de a consumir com as perlengas de sempre, mormente quando o vento não lhe corria de feição.

    Antes que a Elisabete fizesse o exame de quarta classe, o Boucinhas tentou reduzir o campo de manobra da mulher e avisou que esta não havia de seguir o caminho da irmã mais velha e que a Paula já tinha aprendido mais do que precisava, era chegada a hora de ambas ajudarem na vida da família. De novo a D.Fulgência pôs o pé à frente a evitar que a porta fechasse e avançou afoita comunicando ao marido que ela própria havia decidido fazer um curso de equiparação que o Estado propunha às regentes para se tornarem professoras oficiais, mantendo-lhes o vencimento enquanto estudavam. Alugaria uma casa na cidade para a família, assim ficar-lhes-ia mais barato do que pagar pensão para ela e para as filhas. O marido, se quisesse, podia continuar na aldeia a cultivar as terras; elas iam tratar de outras culturas.

    Bem tentou o Boucinhas estancar a hemorragia que ameaçava deitá-lo a perder, porém a mulher já tinha tudo planeado com o auxílio da professora da terra e dos seus familiares que viviam na cidade. Encontrou uma casa antiga com renda barata e tratou, rapidamente de tudo quanto era preciso para se instalar com as três filhas.

    O leitor, com certeza, quererá saber como terminou a história. Saltarei algumas páginas para lhe satisfazer a legítima curiosidade. Pois bem, as meninas prosseguiram os seus estudos, obtiveram os cursos pretendidos e sentem-se actualmente realizadas graças àquela mãe-coragem que, por elas, venceu os seus temores para se opor ao descabido arbítrio do marido. Também ela atingiu os seus objectivos e foi integrada nos quadros do Ministério da Educação.

    1-Zaragatoa - vinho de má qualidade.

    2-Torna-jeira - troca de dia de trabalho com um vizinho.

    3-Regente Escolar - pessoa com a instrução primária, pelo menos, que preenchia um lugar de professor depois de frequentar um curso intensivo de preparação, numa altura em que faltavam professores(as) diplomados(as).

    4-Tolheita - aleijada, deficiente física.

    5-Acabar com os ferros de compor – expressão regional que significava aplicar um castigo físico exemplar.

    Por: Nuno Afonso

     

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